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Abel Silva: Ar como inspiração

Marcos Tristão -
Abel Silva lança seu novo livro esta noite no Jardim Botânico. O novo trabalho traz 70 poemas, dois deles já musicados
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Para quem tem a poesia correndo nas veias, o simples ato de comer uma tangerina pode se transformar em um verso inspirado. Como no poema “Ela”, um dos que estão no livro “Fôlego”, que o poeta, escritor e compositor Abel Silva lança hoje, às 19h, no Bar Belmonte do Jardim Botânico, e que marca seus 50 anos de carreira. “A poesia/é o gomo da tangerina/O sal na sede cravina/A semente imaginária/Da verdade/O pássaro febril/Da liberdade”. “O gomo é o alicerce da fruta, ele só existe por causa dos outros que formam seu gosto. A poesia é um gomo!”, compara Abel, que revela como finalizou o poema: “Quanto mais o poeta escreve, mais tem sede, é como se estivesse permanentemente preparado para receber a poesia. Aí pensei: que palavra pode harmonizar com ‘sede’? Surgiu na minha mente ‘cravina’ e tive de recorrer ao dicionário, porque eu realmente não sabia seu significado. E descobri que era ‘aguda’. Aquela forma realmente me surpreendeu, um achado que deixou de ser meu e passou a ser da poesia”.

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Abel Silva lança seu novo livro esta noite no Jardim Botânico. O novo trabalho traz 70 poemas, dois deles já musicados (Foto: Marcos Tristão)

São inspirações que chegam de forma inexplicável em versos de alguém que já escreveu mais de 300 poesias, tantas musicadas, como “Jura secreta”, “Asa partida”, “Simples carinho”, “Quando o amor acontece” e “Festa do interior”. Entre os parceiros de longa data, estão Sueli Costa, Raimundo Fagner, Moraes Moreira, João Bosco, Robertinho do Recife e Roberto Menescal. Com o último, aliás, está lançando “Roberto Menescal & Abel Silva - O encontro inédito”, CD com dez parcerias que também marca seu meio século de estrada. Todas as faixas são interpretadas por vozes femininas.

O marco inicial da trajetória de Abel é “Eu chego lá”, parceria com João do Vale que, digamos, foi feita na cara e na coragem. “Eu vi o show ‘Opinião’ e depois fui para a Adega Pérola, onde ele costumava beber. Cheguei perto e recitei o refrão. Ele perguntou: “O que é isso, quem é você?” E saiu improvisando”, conta ele que, na época, era estudante universitário. Quando suas músicas começaram a ser gravadas, Abel diz que sentiu que estava se profissionalizando. E pode-se dizer que “Jura secreta”, parceria com Sueli Costa imortalizada por Simone em 1977 e, um ano depois, por Fagner, já trouxe essa segurança. “Sueli é uma querida, minha comadre, amiga e vizinha. Nós moramos juntos no ‘Solar da Fossa’ (uma pensão em Botafogo onde moravam músicos, poetas, cineastas, jornalistas e pessoas ligadas à cultura), onde ela era dona de um harém de poetas!”, brinca Abel, citando Aldir Blanc, Cacaso, Paulo César Pinheiro, Tite de Lemos e Victor Martins como alguns de seus “rivais”. “Lembro que mandei a letra de ‘Jura secreta’ pelos Correios, nem lembro por que, julgando que era um soneto. Uma semana depois ela me disse: “nossa música será gravada”. E eu pensando que ela nem iria dar importância. Ela lê um poema como poucos”, conta. A gravação de Simone criou uma sintonia tal que, nos 20 anos seguintes, a cantora sempre incluía alguma composição de um dos dois ou da dupla. “Recentemente, ela fez uma pesquisa com os fãs-clubes sobre quais eram as melhores músicas. ‘Jura secreta’ e ‘Alma’ ficaram em primeiro e segundo lugar, respectivamente”, conta, orgulhoso.

Sobre seu reconhecimento no mundo literário e musical, Abel gosta sempre de lembrar dos elogios que ouviu de Hugo Carvana. “Ele colocou ‘Festa do interior’ na trilha de ‘Bar Esperança’ e me disse, naquela época, que não havia versos como ‘só uma palavra me devora’”, lembra.

No livro há dois poemas já musicados, “Enternecer”, por Francis Hime, e “Só depois de muito amor”, por Geraldo Azevedo, um dos parceiros mais recentes. “Já temos uma meia dúzia de músicas. Às vezes, ele manda a melodia, outras trabalha em cima da minha letra”, conta. Moacyr Luz, com quem já compôs duas canções, e João Callado, parceiro em “O namorado da música”, faixa do CD anterior “A bel prazer”, de 2016, são os novos companheiros de criação.

Com Roberto Menescal, o encontro aconteceu através de Nara Leão, que gravou “Transparências” em 1985. “Eu brinco dizendo que ele estava procurando parceiros e me escolheu só porque foi por ordem alfabética... Eu já era parceiro do João Donato, que, com Carlos Lyra, são os três grandes sobreviventes da Bossa Nova. Só falta trabalhar com o Lyra, ele que me aguarde!”, avisa. Abel diz que já tem cerca de 30 parcerias com Menescal - “Já pode ser considerada uma união estável”, brinca. Para o novo disco, foi Menescal quem escolheu as intérpretes, entre elas as consagradas Claudia Telles, Leila Pinheiro e Wanda Sá e as ainda pouco conhecidas Georgeana Bonow e Sáloa Farah.

Em “Fôlego”, o novo livro de Abel Silva, com exceção de dois escritos em 2016, traz uma produção bem recente, de poemas datados de 2017 para cá. “Eu já tinha uns 20 poemas e ainda não havia pensado em um título”, lembra. Na época, ele foi a uma consulta em que o médico informou sobre a necessidade de fazer uma cirurgia de desvio de septo. “Aí eu enrolei, dizendo que daqui a alguns meses voltaria... foi quando ele me disse: ‘Abel, um poeta tem que ter fôlego!’. Pronto. Desandei a escrever”, conta. Outra particularidade da edição é que a capa e contracapa - com um texto manuscrito - foram feitas pelo próprio Abel.

E é o ar que abre e fecha o livro com os poemas “Fôlego” (“Quantos horizontes/contêm meus desejos/se os desejos são fontes/de mais desejar/Quando deste vento/instiga o meu peito/se o tempo é rarefeito/pra tanto respirar”) e “Ritmo” (“Não podes respirar/se não esperas o ar/que te inspira/e morres sufocado/se só esperas o ar/e não respiras.”).

O escritor optou por incluir apenas 70 poemas, bem menos do que nos livros anteriores “PoemAteu” e “O gosto dos dias”: “O leitor precisa ter simpatia pelo que vai ler. E, como sou do tempo do longplay, acho também que um livro de poemas tem de ser lido de ponta a ponta. Por isso, um formato menor é bem mais interessante”, defende.

Além do amor tão presente em sua obra, Abel diz que desta vez escreveu sobre a realidade brasileira e internacional, sentindo pesar uma negação da esperança e, até mesmo, revolta em alguns de seus textos. Como no assustadoramente atual “Born in the USA”: (...) “Um homem feliz/jamais compra uma arma/para guardar em casa./Ele sabe que não se guarda a morte/numa gaveta da cômoda/num canto do armário,/porque um dia ela vai escapar (...). “Praticamente ninguém alia uma coisa a outra, mas ‘Festa do interior’ eu fiz pensando na bomba do Riocentro”, lembra sobre sua parceria com Moraes Moreira que teve versões em 13 línguas diferentes.

A inspiração para “Fôlego” veio também pela observação da natureza, lembranças da juventude e o encantamento pelo primeiro neto. “Outro dia percebi um pássaro que ficava a maior parte do tempo submerso, levantando a cabecinha às vezes. Liguei para um amigo no Clube de Observadores de Aves que me disse que era um biguá, que andava sumido por causa da poluição”, conta sobre sobre os versos de “Cagarras’ exposition”. Em “As garotas do Bennett”, ele lembra do colégio do Flamengo, que era perto de onde a família morava - “Minha primeira namorada, que eu não posso dizer o nome, estudava lá....”, diz, matreiro. “A pé” certamente foi inspirado no neto, Ângelo, de seu filho Amaro e Priscila, que moram na Bahia. “Ele tem dois aninhos e me chama de ‘Vô Bel’”, diz, terno.

Com uma trajetória de tantos livros publicados e poemas musicados, Abel diz que respeita o que já fez e não sente vontade de mexer em nada, pois tudo já pertence à poesia. “Talvez eu só não tivesse escrito ‘O afogado’, pois era um momento em que eu ainda não tinha maturidade. Era uma época em que eu estava descobrindo que não acreditava em Deus. E isso numa família onde meu pai era pastor metodista foi muito sofrido, porque eu era sincero na devoção que tinha até então. Entrei em depressão, mas não deixei ela me dominar, passei a fazer exercícios, ir à praia todo dia...”, conta sobre o romance de estreia que diz nunca mais ter aberto.

Vivendo hoje a sua década de 1970, como gosta de falar sobre a idade, Abel Silva diz sentir orgulho de seu trabalho. “Sei que há poetas maiores e melhores do que eu, mas eu estou aí, com minha teimosia. Sinto orgulho da poesia nunca ter me deixado e eu nunca ter deixado a minha poesia”, diz.

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SERVIÇO

Lançamento do livro “Fôlego”, de Abel Silva. Hoje, às 19h. Bar Belmonte (R. Jardim Botânico, 617 - Jardim Botânico).

Editora 7Letras, 88 págs., R$ 39.