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O picadeiro de Jorge de Lima

Filme de encerramento do Festival do Rio, elogiado em Cannes e na corrida para o Oscar, O Grande Circo Místico resgata a obra do poeta alagoano marcado pelo misticismo

Divulgação -
O picadeiro de Jorge de Lima
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Na prática, o Festival do Rio 2018 só chega ao fim neste domingo, depois da entrega do troféu Redentor aos concorrentes da Première Brasil, porém, como já virou tradição no evento, o filme de encerramento ganha sessão de gala na véspera, no caso, hoje: às 21h30, o Odeon vai projetar “O Grande Circo Místico”, declaração de amor de Carlos “Cacá” Diegues à fantasia e seu papel como arma de resistência cultural. Com sessão extra amanhã, às 18h45, no Kinoplex São Luiz, o longa-metragem, com estreia marcada para quinta-feira, tem sido um ímã de alegrias para o realizador de 78 anos desde abril, quando foi convidado para uma sessão especial no Festival de Cannes. Encarado pelo mercado exibidor como um potencial sucesso de bilheteria, ele foi escolhido para representar o Brasil na briga por uma vaga na disputa pelo Oscar de melhor filme estrangeiro de 2019 – e no momento em que Cacá foi eleito imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL). Mas de onde vem essa história sobre cem anos na vida de uma família de artistas circenses, cujo patriarca adquire a lona para presentear sua amada, vivida por Bruna Linzmeyer? Há quem diga que o filme é uma adaptação do espetáculo homônimo, com músicas assinadas por Edu Lobo e Chico Buarque, encenado pelo Balé Teatro Guaíra, há 35 anos, com dramaturgia de Naum Alves de Souza. Mas a origem é anterior e remonta a um dos mais respeitados poetas do país, alagoano como Cacá: Jorge Mateus de Lima (1893-1953).

Na gênese do balé de 1983 - cujo sucesso abriu portas para uma temporada nacional de dois anos e gerou um LP com as canções de Chico e Edu e, agora, do filme de Cacá, está o livro “A túnica inconsútil” (1938), que traz entre seus poemas as aventuras dos trapezistas, palhaços, mágicos e donos do Grande Circo Knieps.

“Jorge de Lima é um dos três maiores poetas da língua portuguesa”, defende Cacá Diegues. “Seu ‘Invenção de Orfeu’, por exemplo, é um épico moderno a altura de ‘Os Lusíadas’. Fazer esse filme a partir de um poema dele é retomar uma tradição barroca que identifica a cultura brasileira, uma tradição sufocada pela globalização realista. Leio Jorge de Lima desde a minha adolescência. Por volta dos 18 anos, encontrei o grande poeta e ensaísta Mário Faustino, que me ensinou a ler o Jorge de um modo mais profundo e definitivo. Desde então, sou obcecado por ele, sempre pensando em fazer alguma coisa da obra dele no cinema”.

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O picadeiro de Jorge de Lima (Foto: Divulgação)

Cannes se impressionou com a fotografia que Gustavo Hadba preparou para “O Grande Circo Místico”, saturando a luz aqui, esfumaçando espaços acolá, tudo para traduzir visualmente a panela de pressão de egos e sentimentos onde são cozidas as paixões de uma trupe que tem o galã francês Vincent Cassel como um mágico sedutor. Mariana Ximenes vai interpretar uma das descendentes dele: uma trapezista que tatua sua fé – e seu ódio – no corpo. Personagens vão e vem numa trama conduzida por um mestre de cerimônias que parece nunca envelhecer, Celavi, interpretado por Jesuíta Barborsa, traduzindo o misticismo da obra de Jorge, uma das características singulares de sua obra, segundo avalia o poeta Alexei Bueno.

“O Jorge de Lima, cuja obra é muito rica, foi desses poetas que passaram por todos os estilos surgidos em sua época, caso do Cassiano Ricardo. Muito precoce, ele consegue fama nacional com um soneto, ‘O acendedor de lampiões’, na verdade a versificação de um trecho em prosa de uma crônica de Bilac. Jorge passou, no curso de sua obra muito múltipla, por todas as postulações poéticas da primeira metade do século XX no Brasil, e permanece como um dos maiores poetas brasileiros de qualquer época”, diz Alexei Bueno, prestigiado por seus poemas e por seu trabalho como ensaísta literário, tendo sido curador de eventos na ABL. “Em 1925, Jorge de Lima adere ao Modernismo. A culminação dessa tendência viria no ano seguinte, 1928, com a publicação avulsa de ‘Essa Negra Fulô’, que no mesmo ano reapareceria abrindo os ‘Novos poemas’. O sucesso nacional desse poema fortemente dramático, tratando como nunca se tratara de um dos inarredáveis dramas que sempre acompanharam a escravidão, foi imediato”.

Alexei explica que “O Grande Circo Místico” é fruto de uma transformação sensorial e religiosa na vida de Jorge de Lima. “Em 1935, tem lugar a conversão do poeta ao catolicismo. É o ano em que ele publica, junto com Murilo Mendes, “Tempo e eternidade”, sob o lema comum de “Restauremos a poesia em Cristo”. Muitos dos poemas do livro adquirem um sopro mais largo, de origem bíblica. As imagens se tornam mais obscuras, mais oriundas do inconsciente, o que os aproximaria de uma tendência surrealista. Todas essas características se acentuam em ‘A túnica inconsútil’, dedicado, aliás’ a Murilo Mendes”, diz Alexei. “É um livro que se abre com o admirável ‘Poema do cristão’. O verso livre longo, típico de certa poesia brasileira dessa década, que encontramos no primeiro Vinicius de Moraes ou em Augusto Frederico Schmidt, tem aí alguns dos seus melhores exemplos”.

Foi a partir de “A túnica inconsútil” que Naum escreveu o seu balé, transformado, décadas depois, em 2014, em um musical dirigido por João Fonseca, a partir de uma adaptação feita por Newton Moreno e Alessandro Toller, com o ator Fernando Eiras no elenco. “O que nos enlaça nesse espetáculo é a aliança que existe entre o circo e o humano. Existe uma porta fechada escrita ‘Perigo!’. O palhaço é quem abre aquela porta continuamente, batendo com o nariz na parede e rindo de si mesmo. É o emblema do humano”, diz Eiras, que roubou a cena neste Festival do Rio no thriller “Cano serrado”.

Em junho deste ano, ‘O Grande Circo Místico’ voltou aos palcos cariocas, no Teatro Cesgranrio, em montagens para adultos e crianças, renovando a eternidade do poema de Jorge de Lima. “Quando ouvi a trilha que Chico Buarque e Edu Lobo escreveram para o balé de Naum Alves de Souza, nos anos 1980, inspirados no poema, decidi que era esse o texto de Jorge de Lima que eu ia tornar em filme”, diz Cacá. “É paixão antiga”.

*Roteirista e crítico de cinema

ENTREVISTA - CACÁ DIEGUES - CINEASTA

Espetáculo contra as interdições masculinas

Além do universo lírico de Jorge de Lima, “O Grande Circo Místico”, 17º longa-metragem de ficção de Cacá Diegues, alveja debates que historicamente são onipresentes na obra do cineasta alagoano desde “Ganga Zumba” (1964), seu filme de formação. O empoderamento feminino, um dos temas mais discutidos da atualidade, já figura no universo do diretor desde os tempos do Cinema Novo, a julgar por cults como “Joanna Francesa” (1973) e “Xica da Silva” (1975). O misticismo inerente ao multiculturalismo nacional, objeto de estudo recorrente na filmografia de Cacá, aparece aqui na figura do centenário Celavi, papel de Jesuíta Barbosa. E há ainda, sob aquele picadeiro, uma reflexão sobre resistência, palavra mais do que necessária no atual cenário político do país, que Diegues avalia nesta entrevista ao Caderno B.

JORNAL DE BRASIL: Foi uma luta para o Festival do Rio ficar de pé este ano, por crise de patrocínio. Mas, com um esforço hercúleo, suas diretoras trouxeram 200 filmes inéditos pra cidade, incluindo o teu. Qual é o peso simbólico de encerrar o evento, com uma trama nas raias do realismo fantástico, neste ano em que a realidade brasileira não teve espaço pra fábulas?

CARLOS DIEGUES: O cinema brasileiro está vivendo um momento excepcional de quantidade (cerca de 200 filmes por ano) e qualidade (sobretudo pelas novas gerações de cineastas e sua diversidade). Não temos que nos tornar prisioneiros de uma mensagem ou de um estilo. Pelo contrário. Podemos e devemos experimentar tudo, do naturalismo político ao barroco da tradição cultural brasileira.

O que o teu microcosmos de artistas circenses simboliza acerca da multiplicidade do povo brasileiro? Há lugar pra circo no dia a dia deste nosso povo?

O Circo não é um símbolo da realidade brasileira, ele é simplesmente a forma original de uma dramaturgia que deu no teatro, na televisão, no cinema e em todas as outras formas de contar uma história humana.