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Literatura: Agonia e epifania de João Silvério Trevisan

Reprodução -
"Pai, Pai"
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O romance “Pai, Pai” de João Silvério Trevisan está entre os que foram indicados para disputar o Jabuti, na 60ª edição deste prêmio, cuja cerimônia ocorrerá no dia 8 de novembro no Auditório do Ibirapuera. Como Trevisan é autor do consagrado “Ana em Veneza”, movida pela curiosidade me propus a lê-lo. Geralmente, gosto de livros que falam sobre pais de escritores. Mas o texto de Trevisan me surpreendeu, por ser extremamente doloroso, doído como uma ferida aberta. Quase que trágico, se não fossem a arte, o amor e as iluminações.

Certamente é bem escrito. Está dividido em pequenos capítulos ou narrativas com títulos. Com raríssimas exceções, cada uma delas é mais dilacerante do que a outra. Cheias de pesadelos, choros convulsivos, compõem uma incessante busca por si mesmo ou por um sentido na vida. As páginas vão sendo viradas vagarosamente, já que existe sempre a possibilidade de, ao seguirmos, nos defrontamos com mais dor e desespero. O pai se faz presente ou ausente desde o início. Mas o livro vai muito além da figura paterna.

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"Pai, Pai" (Foto: Reprodução)

Através do pai, que só lhe teria legado o espermatozoide, como afirma nas primeiras linhas, João Silvério Trevisan pretende se autodecifrar. Entender-se. E, por isso, rompendo-se por dentro, pondo a nu suas entranhas, resolveu enfrentar sua própria história, tendo como eixo ou âncora a história do pai. Em torno da qual navega parecendo não ter um rumo certo. Parecendo, apenas. Porque o rumo é acabar com o mistério. Por que tanta dor, tanto desconforto? Tantos medos, receios, fragilidades? E contraditoriamente, também, porque tanta capacidade de superação através do cinema, do teatro, da literatura?

O pai de João Silvério Trevisan era alcóolatra. Na infância, tinha ataques histéricos, brigava com a mulher, sua doce Maria, e batia em seu primogênito, o próprio Trevisan, sem parar. Ao ponto de que a mulher temesse que atingisse o sexo do filho, castrando-o. O alcoolismo surgiu a partir de uma sensação de fracasso. Mesmo tendo herdado da mãe a padaria e o bar da família, o que provocaria uma cisão eterna com os irmãos, José Trevisan não soube administrá-los. Acumularia dívidas e passaria a fabricar um pão de qualidade cada vez pior. O insucesso se completaria quando surgiu em sua cidade a paulista Ribeirão Bonito, outra padaria concorrente.

Trevisan descreve a rotina do pai, fabricando de madrugada o pão, a massa, as fornadas. E as bebedeiras no bar. O menino era quem entregava o pão pelas ruas da cidade, tendo que ouvir reclamações dos clientes devido à sua má qualidade. Durante algum tempo teve um cavalo que amava, o Parabelo, que o ajudava a levar a grande cesta. Depois, quando o cavalo morreu, continuaria sendo obrigado a carregar a pesada cesta de pães pelas ruas de Ribeirão Bonito. E ai se não trabalhasse direito, pois também ajudava o pai no bar.

Com a falência do pai, que passaria a aceitar trabalhos cada vez mais aviltantes e mal pagos, principalmente quando a família se mudou para São Paulo, a principal provedora era Maria, que tinha um diploma de corte e costura. Muitas vezes ela pensou em se separar do marido, mas era cristã, e um padre havia recomendado que aguentasse o sofrimento. Com isso, ela seria o verdadeiro esteio dos quatro filhos, Trevisan, dois irmãos e uma irmã.

Foi ela quem separou o filho mais velho de José Trevisan, apoiando a vontade do menino de estudar num seminário. Assim como foi Maria, analfabeta, que abriu as portas da literatura para o filho, comprando-lhe livros de autores clássicos, como José Alencar, que alimentariam sua imaginação. Para complicar a situação, desde criança Trevisan se sentiu um ser diferente, gauche. Diferença que advinha de sua homossexualidade. Era objeto de deboches, até mesmo dos cachaceiros que bebiam com o pai. Aos poucos, no seminário e depois na própria vida, foi tendo que enfrentar a homossexualidade, a solidão e a carência permanente do afeto paterno. Com a ajuda de muita análise, mais de 270 anos de análise, diz ele.

Vivendo a sublimidade do amor

Confessional, autobiográfico, corajoso, o livro é a história do enfrentamento de demônios interiores. Ou de como o escritor conseguiu aceitar a homossexualidade, vivenciá-la com prazer, gozo, e como conseguiu também transcender a chaga paterna e viver o amor em toda a sua sublimidade. Mesmo que os amores se sucedessem, fossem sempre transitórios, passageiros. O que importava era estar apaixonado, ou pelo menos aberto a novas paixões.

Há no livro momentos felizes, ao ouvir uma música, ver um filme, ler um poema. Sem momentos felizes, de iluminação, epifania, ninguém sobrevive. Um desses momentos felizes é quando faz uma longa viagem para o exterior durante a ditadura militar. Ou seja, quando decidiu colocar o pé na estrada, em 1973, após ter o filme “Orgia ou o homem que deu cria” proibido pela censura.

A jornada no exílio duraria três anos. “Durante seis meses atravessei vários países latino-americanos. A partir do Uruguai, cruzei Argentina, Chile, Bolívia, Peru, Colômbia, Ilha de San Andrés, El Salvador, Guatemala e México, até chegar aos Estados Unidos e atingir, mais explicitamente, Berkeley, a mítica cidade onde tinham ocorrido as mais importantes manifestações estudantis de 1968. Viajei quase sempre por terra, com duas rápidas exceções em avião. Na mochila, carregava uma cópia 16 mm clandestina do meu filme”, conta Trevisan.

No México, conheceu Francisco Julião, que funcionou como uma benigna figura paterna, devido à sua generosidade. E a mulher de um coronel zapatista lhe apresentou a literatura de Jorge Luis Borges, que antes rejeitava por considerá-lo apenas um reacionário. Não mais abandonaria o criador dos labirintos e do Aleph. Mas a grande experiência ocorreria em Berkeley, um furacão de contracultura que estava pegando fogo. Havia muita solidariedade, “com as muitas variedades do radicalismo político não impedindo o bom convívio entre hippies, pacifistas, socialistas, trotskistas, anarquistas, feministas, ativistas antirracistas, homossexuais militantes ou meros devassos libertários”. Foi um período de aprendizado e maravilhamento, que reforçou o espírito de rebelião do escritor, fazendo com que acolhesse de vez a homossexualidade.

Enquanto estava no México e na Califórnia, estava por volta dos trinta anos. Já mais maduro, teria outro momento de grande alegria ao lançar “Ana em Veneza” na Alemanha, experimentando o reconhecimento literário fora de seu país natal, onde, apesar de seu indubitável valor como escritor, se sentia um pouco perseguido por causa da militância a favor do movimento LGBT.

O livro dá voltas, o autor de torna um cidadão do mundo, mas sempre retorna ao pai, seu alcoolismo e aos maus tratos da infância. São muitos os traumas, como o de uma árvore de Natal que montou com cascas de ovos, já que a família não tinha dinheiro para uma decoração natalina, e o pai a queimou. Por acaso, mas queimou. Através de Jung, descobrirá que o alcóolatra é um ser em busca de êxtases que façam com que esqueça sua miséria.

Para não ser devorado pela memória do passado e ser dono de seu destino, num ritual totêmico devora o próprio pai e recusa-se a aceitar qualquer tipo de autoridade que restrinja sua liberdade. Nunca quis ser pai nem mesmo professor. E por uma das coincidências da vida, onde nada é coincidência, teve que acompanhar no hospital a morte de José Trevisan, já que os outros irmãos não podiam, estavam ocupados com seus empregos certinhos. Enquanto ele do ponto de vista burguês era um fracassado, sem falar que a literatura cria horas vagas de disponibilidade. Cuidando do pai moribundo, pela primeira vez João Silvério Trevisan tem a percepção de que amava aquele homem que sofrera como Jó. Matando-se diariamente com a bebida.

Tendo chegado à casa dos 70 anos, apesar de todas as sessões de análise junguiana – nunca teve dinheiro para pagar análise freudiana -- os temores sempre continuavam, os pesadelos, os sonhos confusos, os choros, as noites mal dormidas. Vive um dia de contratempos, no qual quase é atropelado, e descobre ser o Dia dos Pais. Numa madrugada de Páscoa, um sonho estranho. Era um velho com cabelos negros, muito parecido com o pai. Com o mesmo sentimento de fracasso e inutilidade. Ou seja, era o próprio pai sonhando. Só que o dia era de ressurreição. Estava superando o que o pai vivera e sofrera.

O final do livro se encerra com um Dia de Reis Magos, o 6 de janeiro, também chamado Dia da Epifania. Um dia de luz. Trevisan tem um momento de iluminação ao visitar sua cidade natal e a casa da família com seu novo amor, um rapaz chamado Luís. Está feliz, realizado, finalmente sem medo. Havia perdoado o pai. E o perdão é uma graça, uma benção, ao abrir os caminhos da fé e da esperança. A vida é um milagre, descobre. Um mistério a ser desvendado. Uma epifania.

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SERVIÇO

“PAI, PAI!”, de João Silvério Trevisan. Ed. Alfaguara.

256 páginas. A partir de R$ 40,19