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Literatura: Vozes femininas da Zambézia

Divulgação -
O ALEGRE CANTO DA PERDIZ
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“Há uma mulher nua nas margens do Rio Licungo. Do lado dos homens. Há uma mulher na solidão da beira do rio. Uma mulher negra, tão negra como as esculturas do pau-preto. Negra pura, tatuada no ventre, nas costas, nos ombros. Nua, assim completa. Ancas, cintura, umbigo, ventre. Tudo à mostra...”

Uma mulher totalmente nua à beira do rio. Quem sabe uma louca...Assim começa “O alegre canto da perdiz”, livro da moçambicana Paulina Chiziane (Dublinense, R$ 49,90, 352 págs.), que derrama sobre nós sóis, luas, estrelas, constelações, galáxias, pássaros, palmeiras, verdes montes, mares, desertos, marinheiros invasores, negros escravos, condenados, sipaios assassinos, torturadores, vozes de mulheres e de homens que viveram na Zambézia nos tempos da colônia e sofreram, morreram ou sobreviveram.

O livro é poético e dilacerante. Fala-nos de nascimento e morte, útero, cordão umbilical, dores de parto, seios, amamentação, beijos, colo de mãe e mestiçagem. Paulina não nos conta a história da Zambézia cronologicamente. Tudo é narrado simbolica e liricamente, como se fosse uma longa lenda ou fábula. Passamos a conhecer os fatos por meio da trajetória de uma forte protagonista feminina, Delfina, e dos personagens que giram em torno dela, seus homens e seus filhos, sobretudo suas duas filhas, a negra Maria das Dores e a mulata Jacinta, que não era branca mas também não era negra, sofrendo sempre rejeições.

Ambiciosa, Delfina, prostituta voraz do cais, que enlouquecia os homens com sua beleza de ébano, se apaixona pelo negro José dos Montes, um condenado. A paixão é violenta, telúrica. Assustada e amante da liberdade, ela propõe um casamento, pois sabia que o casamento matava o amor. A mãe, Serafina, foi contra o enlace, o pai também. “Casar com um condenado?”, diz a mãe. “Que ideia mais sem sentido”. Perderia a filha e a fonte de renda advinda da prostituição que lhe garantia o alimento. Mas Delfina casa e desgraça José dos Montes.

Macaque in the trees
O ALEGRE CANTO DA PERDIZ (Foto: Divulgação)

Porque exige que ele se assimile, aceite o jogo dos brancos colonizadores, os indo-portugueses, homens da cruz e da espada. Só assim, José dos Montes poderia ganhar um salário maior. Porque a ex-prostituta quer uma vida melhor, não quer morar em palhoça. Quer comer e se vestir dignamente. Louco por Delfina, o marido abre mão de seus deuses pagãos e aceita a assimilação. Converte-se e se torna um sipaio, um soldado, capanga dos brancos. E mata seus irmãos negros. Assassina, tortura, suja as mãos de sangue, conspurca os ouvidos com gritos, assumindo um papel na guerra colonial que o vai deixando cada vez mais louco, afastado de suas raízes, sua terra. A loucura atinge o auge quando chega à casa um dia e vê que Delfina, que já era mãe de dois filhos seus, Zezinho e Maria das Dores, dera a luz à mulata Jacinta. Louco, perseguido pelos fantasmas das pessoas que torturou, ele foge. E mata o único homem que poderia ajudá-lo, Moya, um sábio.

Um feitiço perigoso

Sem José dos Montes, Delfina quer mais, muito mais, e pede ao feiticeiro Simba que a ajude a seduzir o homem branco, o português Soares, que fora o pai de sua filha. O feiticeiro faz o feitiço a um preço alto. Delfina terá que enriquecê-lo também. A arte do bruxo funciona. A mulher de Soares volta para Lisboa e Delfina concretiza o seu sonho de ser patroa, quase branca. Enche-se de cremes. Usa peruca. Sente-se uma rainha. Ela trata Jacinta bem, e maltrata Das Dores, explorando-a e obrigando-a a servi-la como uma empregada. Soares, cansado da futilidade da mulher, que amara por ser negra e queria ser branca, fica com saudades de sua portuguesa, a loura de pele alva que sempre lhe fora fiel. O caráter de Delfina o assusta. Volta para Lisboa.

Delfina praticamente endoidece. Torna-se uma bêbada, comporta-se novamente como uma perdida. Para reencontrar um novo rumo para a vida, procura o feiticeiro Simba de novo e ele diz que ela não pagara a dívida. Vai ter que pagar. E aí ela comete um grande crime. Vende a virgindade de sua filha Maria das Dores a Simba. Ele logo arquiteta casar-se com a menina, de olho na herança deixada por Soares, que beneficiara todos os filhos, mesmo os de Delfina. Antes das núpcias, a viola cruamente e não mais a devolve para a mãe. Das Dores é a mulher nua que se encontrava à beira do rio, no início do livro, porque fugiria do cativeiro que lhe seria imposto por Simba com seus três filhos, Rosinha, Fernando e Benedito. Fugiria e os perderia no meio do caminho. Seriam criados por uma freira.

Com ódio da mãe, por causa de Das Dores, Jacinta se casará com um branco e praticamente expulsará a mãe da igreja no dia do casamento. Apesar de todo este som e fúria, das rupturas, das tragédias, dos assassinatos, das violações, dos choques entre brancos e negros, o livro acabará em harmonia, com o canto alegre da perdiz. Paulina acredita, ou pelo menos se empenha em acreditar, na miscigenação. Num mundo futuro onde as raças se confraternizem. E sobretudo crê na força das mulheres. Até mesmo Delfina, que fora tão má, tão ambiciosa e pecadora, será perdoada pelos familiares. O amor vencerá. E a Zambézia se tornará independente, governada por mulatos.

O livro também fala de matriarcado e patriarcado. Conta lendas tribais do início do mundo em que as mulheres é que o dominavam, até que acontece o prazer do sexo, a vinda dos homens e das crianças. E as mulheres perdem o poder. Ficam em casa, cuidando das crianças, enquanto os homens caçam ou trabalham para sustentar e alimentar suas famílias. Agora, as mulheres tentam reconquistar o velho poder. Paulina diz que Delfina, a mulher que teve dois maridos e que tinha ambições ilimitadas, também é uma lenda, cantada em versos e cantigas. Será?

*Jornalista e escritora

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SERVIÇO

O ALEGRE CANTO DA PERDIZ - De Paulina Chiziane. Editora Dublinense. 352 págs. R$ 49,90