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Massacre de Peterloo na telona

Divulgação -
Episódio sangrento ocorrido na Inglaterra é relembrado na mais recente produção do premiado diretor Mike Leigh, que será exibida hoje em Londres
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LONDRES - Existe uma mancha na história da Inglaterra que os londrinos vão passar a limpo hoje, no Festival do British Film Institute (BFI), com a ajuda do mestre Mike Leigh, ganhador do Leão de Ouro com “Vera Drake”, em 2004, e da Palma de Ouro, com “Segredos e mentiras”, em 1996. Seu novo filme, o comovente “Peterloo”, é dedicado a um sangrento episódio histórico que traz muita inquietação a seus conterrâneos – o que explica a pompa com que será exibido aqui. Chama-se de Massacre de Peterloo um combate que ocorreu em St. Peter’s Field, Manchester, no Noroeste da Inglaterra, em 16 de agosto de 1819.

Na ocasião, a cavalaria oficial do Reino marchou, armada, contra uma multidão de cerca de 70 mil pessoas, reunidas em uma manifestação pacífica para buscar a reforma da representação parlamentar. O protesto do povo era focado numa ressaca econômica referente ao fim das Guerras Napoleônicas: em 1815, o Reino Unido passou a sofrer com períodos de inflação e de desemprego crônico, exacerbados pela aprovação das chamadas “Corn Laws” (Leis dos Cereais), de imposto sobre a produção. A pressão gerada pelas más condições econômicas, associadas a supressões nos direitos eleitorais no Noroeste da Inglaterra, aumentou o apelo ao radicalismo político. A população foi às ruas, mas acabou silenciada a tiros. Essa é a história que Leigh revive.

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Episódio sangrento ocorrido na Inglaterra é relembrado na mais recente produção do premiado diretor Mike Leigh, que será exibida hoje em Londres (Foto: Divulgação)

“Existe um lugar do silêncio que se confunde com o medo e, por isso, precisa ser combatido”, disse Leigh ao JORNAL DO BRASIL em Veneza.

É difícil explicar por que o júri do Festival de Veneza, onde Leigh lançou seu mais recente projeto, esnobou este belíssimo libelo em prol da liberdade de expressão. Representante das narrativas clássicas do Reino Unido, este épico às avessas renova a estética palavrosa de seu realizador, um papa do naturalismo. No filme, ele recria - de modo cru, sem virtuosismos - um massacre em Manchester, em 1819, organizado extraoficialmente pelo governo vigente para silenciar as lutas democráticas dos ingleses pobres. Em Veneza, havia espectador fechando os olhos diante da brutalidade da sequência do embate de tropas armadas contra 6 mil pessoas de baixa renda, onde cabos de fuzis chocavam-se contra crânios humanos.

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Massacre em Manchester foi ordenado para sufocar as reivindicações dos ingleses pobres (Foto: Divulgação)

“Eu não tento trazer respostas sobre esse massacre. Quis apenas emprestar carne e emoção aos relatos que foram compilados acerca da luta democrática que favoreceu, entre outras coisas, a criação de uma imprensa de oposição na cena monárquica do século XIX”, disse Leigh ao JB, Veneza. “Estamos vivendo dias de muita intolerância política no mundo. O direito à insatisfação não pode ser retirado das pessoas. E a batalha de Peterloo ilustra a vontade de resistência que moveu o povo da Inglaterra”.

Na competição do BFI, “Destroyer”, de Karyn Kusama, no qual Nicole Kidman vive uma policial em decadência física e moral, segue como o favorito ao prêmio de ficção, tendo como maior rival o longa-metragem chileno “Tarde para morir joven”, com produção do brasileiro Rodrigo Teixeira, de “Tim Maia”. A diretora Dominga Sotomayer demonstra um domínio invejável do intimismo nesta trama sobre o olhar das jovens Clara e Sofia, acompanhadas pelo adolescente Lucas, sobre as cicatrizes deixadas pelo governo Pinochet em uma área rural chilena do início dos anos 1990.

A América Latina também foi bem representada no evento pelo filme argentino “Él Ángel”, de Luis Ortega, já comparado a “Cidade de Deus” (2002) por sua reconstituição da violência em nosso continente nos anos 1970. O longa é centrado nos crimes do Anjo, ou melhor de Carlos Eduardo Robledo Puch, adolescente que, entre 1971 e 72, acumulou dezenas de roubos e um punhado de assassinatos, em nome do prazer, não da necessidade.

*Rodrigo Fonseca é roteirista e crítico de cinema

Divulgação - Massacre em Manchester foi ordenado para sufocar as reivindicações dos ingleses pobres