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BFI - London Film Festival se mobiliza com série que diretor de OldBoy criou a partir de A garota do tambor, de John le Carré

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Na trama de "The little drummer girl", Charlie (interpretada por Florence Pugh) conhece Becker (vivido por Alexander Skarsgård), que trabalha para o serviço secreto de Israel
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Criado em 1953 com a tarefa de preservar e promover em solo britânico a pureza do cinema autoral, o BFI – London Film Festival resolveu afrouxar seus princípios rígidos em relação a mídias concorrentes à telona e se rendeu à televisão: a exibição de dois episódios da minissérie “The little drummer girl” foi uma das maiores atrações de todo o evento até agora. Domingo à tarde, dezenas de jornalistas do mundo inteiro peitaram a gelada chuva que gotejava incessantemente na capital inglesa para conferir o que o sul-coreano Park Chan-wook (diretor do cultuado “OldBoy”, de 2004) produziu para a BBC a partir do romance “A garota do tambor”, de 1983, dividido agora em seis episódios.

Aos 86 anos, o autor do livro, o ás da literatura de espionagem David John Moore Cornwell, ou apenas John le Carré, foi o supervisor da adaptação de sua prosa. Florence Pugh (de “Lady Macbeth”) é a menina do título, peça estratégica numa operação antiterror envolvendo o serviço secreto de Israel, nos anos 1970, entre bombardeios e paixões também explosivas. Sua exibição na emissora da Grã-Bretanha está marcada para o próximo dia 28.

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Na trama de "The little drummer girl", Charlie (interpretada por Florence Pugh) conhece Becker (vivido por Alexander Skarsgård), que trabalha para o serviço secreto de Israel (Foto: Divulgação)

“Vou sempre beber na literatura, porque os livros abrem as portas da mesquinharia que rege a sociedade”, disse o cineasta de 55 anos, classificado entre os críticos do Brasil de rodriguiano, por sua visão trágica sempre ligada ao desejo e aos interditos morais do prazer, como se vê na obra de Nelson Rodrigues (1912-1980).

Chan-wook veio à cidade cercada de pompas. O BFI prometeu um papo ao vivo dele com a imprensa, mas não cumpriu, ampliando a curiosidade sobre a tônica tragicômica e erotizada de sua obra audiovisual: neste atual projeto pautado em Le Carré, previsto para rodar o mundo em novembro, a atriz de teatro vivida por Florence faz da libido uma arma. Abordado sobre sua possível relação com o autor de “Os sete gatinhos” pelo JORNAL DO BRASIL, num corredor do Palais des Festivals, em Cannes, em 2016, logo após ter declarado em público seu entusiasmo pela literatura latino-americana, Chank-wook afirmou não ser familiar à prosa do Anjo Pornográfico. “Há uma dimensão pouco falada no meu cinema, feita de forma consciente, que é o meu interesse em criar um jogo de espelhos, em que entendemos diferentes fatos sob distintos pontos de vista, compreendendo que o amor não tem nacionalidade, estando à mercê apenas das diferenças de classes sociais ou de nossos fardos patrióticos”, diz o cineasta, que após o sucesso do erótico “A criada” (2016) embarcou nesta minissérie para a BBC.

Na trama, Charlie (Florence) disfarça seus ideais políticos em peças militantes de pouca expressão até que, em uma viagem à Grécia, conhece um Adônis misterioso, Becker (Alexander Skarsgård), que trabalha para o serviço secreto de Israel. Becker e seu superior, Marty (Michael Shannon, em sublime atuação), convencem Charlie a ajudá-los na busca pelo culpado de um atentado contra um político israelense na Alemanha. Só uma civil pode despistar a célula palestina ligada ao crime. Começa aí o perigo, um jogo de sedução e um clima de tensão que Chan-wook imprime na tela com eficiência de craque, explorando a complexidade da jovem Charlie. “O reino do cinema ainda dá pouco valor a um protagonismo feminino que possa desafiar arquétipos”, disse o cineasta, ciente de que John le Carré não é fã da versão anterior de “A garota do tambor”, feita para o cinema em 1984, por George Roy Hill, com Diane Keaton.

Falando no apelo do artesão autoral da Coreia do Sul, vale destacar que outras latitudes da Ásia andam brilhando no BFI – London Film Festival, em especial “Suburban birds”, da China. Indicado ao Leopardo de Ouro no Festival de Locarno, este drama que marca a estreia na direção do chinês Qiu Sheng vem arrebatando fãs na Inglaterra com um olhar doce e doído sobre a juventude, à moda do cult “Conta comigo”. No longa, Hua, um engenheiro, é escalado para gerir um obra em uma escola recém-evacuada por problemas na estrutura de seu edifício. No local, ele encontra o diário de um adolescente também chamado Hua. Ao ler o relato do garoto, Hua revisita seus próprios fantasmas. Lembra – e muito – a aclamada produção de MG “Arábia”, lançada no primeiro semestre.

Vindo de Cannes, onde rachou opiniões, “Ash is purest white” fez mais sucesso em Londres do que na Croisette. Embora não seja o melhor trabalho do chinês Jia Zhang-ke (de “Plataforma”), esta radiografia da lealdade entre gângsters de periferia da Ásia consagra Zhao Tao como uma das grandes atrizes de seu continente na atualidade por seu desempenho como a empoderada faz-tudo de uma gangue de criminosos de quinta categoria.

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Michael Shannon é o cérebro da operação paramilitar (Foto: Divulgação)

Hoje, a cidade confere o badalado longa italiano “Lazzaro felice”, na competição oficial. A direção é da cineasta Alice Rohrwacher, encarada pela crítica mundial como um pilar de reciclagem para a estética da Itália na ficção, com seus dois pés bem fincados na tradição do neorrealismo dos anos 1940 de Roberto Rossellini e Vittorio De Sica – o movimento que modificou a maneira de se filmar, a partir do lançamento de “Roma, cidade aberta”, em 1945, questionando o ideal moralista de “final feliz” e incorporando temas reais urgentes aos enredos. Laureada com o Grande Prêmio do Júri de Cannes de 2014 por “As maravilhas”, no qual falava sobre descendentes do povo etrusco, Alice voltou a ser contemplada com mimo da Croisette este ano, em que concorreu com a história do jovem Lazzaro. Conquistou o prêmio de melhor roteiro por este longa, que fala de uma paupérrima aldeia de planteio de fumo, tendo um camponês de bondade franciscana como seu protagonista. A produção já correu mostras competitivas nos EUA, na Espanha e em Israel.

“O ideal do que é ‘bom’ só pode ser percebido na sua inteireza se analisado à luz da natureza, com uma analogia direta com animais. Uso lobos no filme como uma forma de metáfora com a selvageria. E não é nada fácil dirigir lobos”, disse Alice ao JB.

Esta semana, o brio inglês fará da sessão do longa “The favourite” uma festa na cidade, nesta quinta. No comando está o diretor grego Yorgos Lanthimos, responsável por longas polêmicos como “O Lagosta” (2015) e “O sacrifício do cervo sagrado” (2017). Este longa ligado à história da Europa (tendo o Reino Unido como estrela) viveu momentos de glória na premiação do último Festival de Veneza, do qual saiu com dois troféus graças ao virtuosismo de sua narrativa. Recebeu na terra das gôndolas o Grande Prêmio do Júri e viu a inglesa Olivia Colman (de “The crown”) ser coroada melhor atriz.

Divertido e debochado, o longa de Lanthimos se passa bem longe da Grécia: seu foco está na Inglaterra do século XVIII, imersa em guerras com a França, a Rainha Anne (Colman, em magnífica atuação) se rasga em berros de dor por uma gota que incha seu pé. Anne só desfruta de alguma bonança quando abusa do corpinho de sua mais querida nobre: Lady Sarah, vivida por Rachel Weisz. Sarah gosta muito do Poder e, para chegar a ele, não vê problemas em deleitar sua monarca com seus beijos e toques – em cenas picantes. Mas a chegada de uma jovem e sabia aia (Emma Stone) vai desafiar a boa vida de Sarah. De luz bruxuleante, sua direção de fotografia evoca o cult “Amadeus” (1984), de Milos Forman.

O Festival de Londres termina no dia 21, com a entrega dos prêmios de melhor filme de ficção, melhor documentário e melhor longa de cineasta estreante

* Roteirista e crítico de cinema

Divulgação - Michael Shannon é o cérebro da operação paramilitar