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'Legalize já - Amizade nunca morre' fala sobre a amizade entre Skunk e Marcelo D2 que transformou suas vidas e originou o Planet Hemp

Reprodução -
Ícaro Silva e Renato Góes na cena do primeiro show do Planet Hemp, que aconteceu no Garage, em 1993
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“Planet Hemp chegou pra detonar/ Poesia urbana é o que fazemos/Vocês vão ter que me aturar”. A música “Phunky Buddha”, do disco de estreia (1995) da banda carioca Planet Hemp, é um dos pontos altos do filme “Legalize já - Amizade nunca morre”. Ela foi uma das apresentadas no seminal show dos cariocas no palco do extinto Garage, na Praça da Bandeira, no dia 24 de julho de 1993. Na tela, Ícaro Silva e Renato Góes cantam, interpretando Skunk e Marcelo D2. E é justamente sobre o início da amizade deles, de onde surgiu a banda, que fala o longa dirigido por Johnny Araújo e Gustavo Bonafé, com estreia marcada para quinta-feira.

O projeto, que demorou nove anos para ficar pronto, teve a participação de Marcelo D2 desde o início. Ele assina o argumento com Johnny e é um dos responsáveis pela trilha sonora. “Não sabia da existência do Skunk e não conhecia quase nada da história da banda. Isso acabou me proporcionando uma experiência muito mais rica. Passamos por uma preparação de dois meses, em que vi os poucos vídeos que existem dele. Eu aprendi mesmo com o Marcelo. Foi um filme feito com muito afeto”, conta Ícaro sobre a experiência de viver Skunk, que morreu jovem, de Aids, sem conseguir ver o sucesso estrondoso em que a banda viria a se transformar.

Macaque in the trees
Ícaro Silva e Renato Góes na cena do primeiro show do Planet Hemp, que aconteceu no Garage, em 1993 (Foto: Reprodução)

Alguns desses vídeos a que Ícaro se refere são exibidos nos créditos finais do filme e foram descobertos quase por acaso. “Um amigo nos disse que havia uma filmagem feita por estudantes da UFRJ do show do Garage e outros momentos dos dois. Eram latas guardadas, nem estavam reveladas!”, conta Gustavo.

Sobre a semelhança de Ícaro com o amigo, Marcelo D2 costuma dizer que ficou tão impressionado que não teve coragem de assistir às cenas em que ele já aparece no estado terminal da doença. “No dia em que Ícaro entrou na sala para fazer o teste de elenco, ele leu o texto e, apressado, disse que precisava sair e que depois nos falávamos. Eu disse pro Johnny: ‘Esse tem a energia do Skunk! Seu desafio foi criar uma pessoa com tão poucos registros’”, lembra Gustavo.

O diretor, que já havia feito vários projetos em parceria com Johnny, entrou na codireção de “Legalize já” dois meses antes do início das filmagens, em 2016. “Teve um período em que o projeto deu uma esfriada e, na retomada, Johnny me chamou porque disse que estava ‘contaminado’ com coisas antigas. De qualquer forma, eu estava a par da história, tinha acompanhado algumas leituras de roteiros e conhecia o Marcelo”, explica o diretor.

No filme, Ícaro e Renato cantam em todas as cenas de ensaio e shows. Enquanto Ícaro já tinha experiências anteriores - este mês ele volta à estrada com a turnê do musical “Ícaro and The Black Stars” -, Renato jamais havia cantado. “Ele se dedicou horrores! Assim que foi chamado para o papel, arrumou uma banda e começou a cantar. Ele construiu um Marcelo do jeito dele”, conta o diretor. Na tela, além de “Phunky Buddha”, os dois mandam bem em “A culpa é de quem?” (“O que você tem na cabeça?/Tudo que eles te falam, você acha uma beleza/Aprenda a dizer não, pense um pouco, meu irmão/Você tem medo de quem?”) e “Mantenha o respeito” (“Eu não sou menos digno porque fumo maconha/Me contem, me contem aonde eles se escondem/Atrás de leis que não favorecem vocês”).

Gustavo gosta de dizer que entrou na produção para “apertar uns parafusinhos”: “O Felipe (Braga, roteirista) já havia entregue o primeiro tratamento do texto. Aí, adaptamos umas coisas, crescemos alguns personagens, como o do Brennand que, a princípio, não era argentino e resolvemos adaptar para o Ernesto Alterio”.

A história do camelô e do candidato a rapper, passada nos anos 1990, tem uma fotografia diferente, similar à sépia. Gustavo conta que chegaram a pensar em fazer o filme em preto e branco para dar essa aura de passado, porém acabaram fazendo testes no digital para se aproximar de um recurso da época da película, quando se lavava várias vezes o negativo para ganhar cores desbotadas e alcançar uma textura interessante. “Não queríamos mostrar o Rio das praias, colorido, esse não era o mundo dos meninos. Então, optamos por esse visual, que remete muito a ‘O resgate do soldado Ryan’”, compara.

Vidas transformadas

“Legalize já - Amizade nunca morre” é muito mais uma história da afinidade entre amigos do que de uma banda. Jovens que, a princípio, não tinham perspectiva alguma: o camelô Marcelo, com a namorada grávida e sendo expulso de casa pelo pai, e Skunk, vivendo de gravar fitas, morando num quarto infecto e sofrendo todo tipo de preconceito e violência policial. Em determinada cena, Marcelo diz para Skunk: “Eu não sou preto”. E Skunk, de pronto, retruca: “Mas eles te tratam como se você fosse”.

“Duas vidas são transformadas para fazer a diferença. Acho que o Brasil ainda não entendeu a força de uma união assim. As pessoas estão magoadas com suas vidas, mas não veem que a potência está na coletividade. O ódio ganhou muito espaço e não se consegue pensar no outro. Estamos vivendo um momento perigoso, com discursos que incentivam o extermínio das ideias. Prefiro o caminho do otimismo, por isso acho que é um filme necessário e oportuno”, opina Ícaro. O ator está no elenco da série “Coisa mais linda”, que estreia em breve na Netflix, e participa dos longas “Música para cortar os pulsos” e “45 dias sem você”, do diretor Rafael Gomes, previstos para 2019.

Gustavo diz que a amizade entre Skunk e Marcelo deve ter durado entre dois a três anos e que muito dela é apresentada de forma ficcional no filme. “Para sintetizarmos em uma hora e meia de filme, inserimos muita ficção, mas também muitas outras coisa que realmente aconteceram. Pelas histórias que ouvimos, por exemplo, sei que Skunk morava com o pai e a madrasta e que foi embora à procura da mãe biológica, que morava na Lapa. Por isso situamos ele morando e circulando pelo bairro”, diz Gustavo.

Sobre o primeiro encontro dos dois, Marcelo conta que Skunk um dia chegou onde ele trabalhava de camelô, na Rua 13 de Maio, e perguntou por que estava usando uma camisa do Dead Kennedys, já que ele nem deveria conhecer a banda - aliás, uma das primeiras cenas do filme é Skunk ouvindo “Holiday in Cambodia”, da banda de punk rock americana, que tem versos como “Bem, você vai trabalhar mais/Com uma arma nas costas/Por uma tigela de arroz por dia/Escravo para…”. A cena existe no filme, mas em outro contexto. Na ficção, eles se conhecem quando Marcelo está fugindo do rapa e dá um encontrão em Skunk que, na pressa, acaba levando um caderninho com letras de músicas escritas por Marcelo. Ele percebe o talento do futuro amigo e tenta convencê-lo a montar uma banda. “Nós romantizamos um pouco. É aí que entra o cinema!”, brinca o diretor.