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Com Us+Them, Roger Waters proporcionará ao público carioca uma maratona sensorial, capaz de levá-lo a uma imersão rara

Contexto geopolítico é constantemente repaginado nas sucessões de concertos do artista

Kate Izor/Divulgação -
Do alto de 50 anos de carreira, Waters apresentará 80% de repertório do Pink Floyd, mas o artista garante linearidade entre os clássicos e o novo trabalho autoral
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Poucos minutos antes das oito da noite do próximo dia 24 milhares de pessoas no estádio do Maracanã vão começar a ter sensações diferentes. Uma pressão no peito causada por baques de sons graves e uma performance de luzes jamais vista vão causar uma estranha vertigem. Às oito em ponto, o limite da lógica começa a ser rompido com o som de um batimento cardíaco em altíssimo volume. A impressão é de que cada batida daquele coração empurra as pessoas mais para trás.

As luzes são um espetáculo à parte, pilotadas por técnicos estrategicamente posicionados com seus computadores, telão com quase mil metros quadrados. Na sequência, o som psicodélico atonal, a gargalhada do “lunático”, o grito lancinante de uma mulher. Muitos já reconhecem a canção, ela mesma, “Speak to me”, do lendário álbum “The dark side of the moon” (1973). A nave decola, arrastando milhares de pessoas dos 15 aos 70, que, a partir daquele momento, estarão literalmente vivendo em outro planeta. O combustível é a música, o som revolucionário de uma das mais monumentais bandas de todos os tempos, o Pink Floyd.

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Do alto de 50 anos de carreira, Waters apresentará 80% de repertório do Pink Floyd, mas o artista garante linearidade entre os clássicos e o novo trabalho autoral (Foto: Kate Izor/Divulgação)

Na sequência, “Breath” (álbum “The dark side...”) e, em seguida, a primeira pancada mais forte, uma “covardia” chamada “One these days” do álbum “Meddley” (1971), mais conhecido no Brasil como o “disco da orelha”. Depois, “Time” (“The dark side...”), uma reprise rearranjada de “Breath” e uma surpreendente versão que Waters fez de “The great gig in the sky” (mais “Dark side...”). E aí começam as guinadas, os desvios inesperados, ao longo de 23 músicas, com direito a bis de duas no final.

Comandante da gigantesca estação multimídia, na verdade multitudo, Roger Waters há vários meses corre o planeta a bordo da turnê “Us + Them” (nós mais eles). No show, ele e banda apresentam clássicos de grandes álbuns: “Wish you were here” (1975) , “The wall” (1979), “Animals” (1977) e “The dark side of the moon”, além de trechos do seu mais recente álbum, “Is this the life we really want?”.

Baixista, cantor, compositor, regente, produtor, Waters em 1965 criou o Pink Floyd com o guitarrista, cantor, compositor e artista plástico Syd Barrett. Barrett criou o nome, disse que seria uma banda de “sons amantes do absurdo”. Considerado genial, Syd Barrett tinha graves distúrbios psíquicos e, devido ao uso em escala industrial de LSD, anfetaminas e outras drogas sintéticas, teve um surto psicótico. Os médicos achavam que seria temporário, caso ele largasse as drogas, mas não foi assim.

O surto não cessou (a chamada viagem de ida sem volta) e, para conseguir tocar, o Floyd naquela virada de 1967 para 1968 precisou do socorro de David Gilmour, convidado para a outra guitarra. Não deu e Syd deixou o grupo. Ficou em casa, pintando seus quadros (grande artista) e chegou a gravar uns álbuns, ajudado pelos engenheiros de som. Morreu em 2006, aos 60 anos, de câncer no pâncreas.

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Waters (no alto), com a formação mais famosa da banda: Nick Mason (E), David Gilmour (C) e Rick Wright (E) (Foto: Reprodução)

Deslumbramento de McCartney

Nos tempos iniciais do Pink Floyd, entre muitas invenções pioneiras no psicodelismo, estava o primeiro telão projetando bolhas no fundo do palco durante os shows que o grupo fez nos arredores de Londres. Um desses shows foi no UFO, bar underground pequeno, mas muito ligado à vanguarda. Foi lá que, numa noite, Paul McCartney apareceu com uma garota e praticamente a deixou falando sozinha. Fez questão de andar até a fila do gargarejo para ver “o que era aquilo” (como disse em sua biografia) e, vidrado, entendeu que Barrett, Waters, mais Nick Mason (bateria) e Richard Wright (teclados) estavam fazendo o som do futuro.

Macca era o único beatle que saia do “bunker” atrás do novo, das coisas que estavam acontecendo e o Pink Floyd chamou muito a sua atenção. Ele não frequentava points de playboys descolados para ouvir modismos requentados, optando pelo Floyd, Soft Machine e chegou a assistir Frank Zappa algumas vezes nos Estados Unidos, anos depois.

No Maracanã, Roger Waters não aparenta nem de longe ser um arquimilionário do entretenimento, graças a muito, muito trabalho duro ao longo de mais de 50 incansáveis anos de estrada. Ele estará no palco empunhado o seu baixo preto, calça jeans, camiseta com mangas preta, tênis branco, regendo aquele caos que a música transforma em Cosmo. As pessoas parecem não acreditar no que veem, no que sentem, especialmente quando se lembram de que o bruxo responsável por aquela espécie de alucinação coletiva está com 75 anos e sem pensar em parar.

Ele faz as músicas entrarem em ebulição num palco que se vira uma gigantesca instalação de arte contemporânea. O som quadrifônico (que som!) está em todos os cantos e despeja centenas de implacáveis decibéis, capazes de empurrar notas musicais até o infinito.

Claro, ele toca momentos da ópera rock “The wall” (1979), mas com cuidado. Já fez um tour com “The wall” que passou, inclusive, pelo Brasil. A obra é de autoria dele. Até seu ex-parceiro ex-colega e ex-amigo David Gilmour, músico também fabuloso, disse várias vezes que “‘The wall’ foi uma ideia do Roger”. No Maracanã, o público vai assistir a cenas que lembram pedaços do filmaço que Alan Parker fez, seguindo exatamente cada passo do álbum.

A filmagem foi um estresse, a montagem mais ainda. Roger Waters ficou sentado o tempo todo ao lado do diretor opinando, palpitando, quase brigando. O “fofocário” londrino dizia que houve pancadaria física algumas vezes, mas Roger cismou que só Alan conseguiria fazer o filme que ele queria. O diretor jamais negou que se apaixonou pelo projeto. A ideia de convidar Gerald Scarfe (82) para fazer toda a animação do filme foi dos dois. Scarfe superou as expectativas, suas animações entrecortadas pelas músicas do Floyd aliadas à atuação lancinante de Bob Geldof como o personagem principal, levou muita gente as lágrimas. Scarfe vinha de longe. Seus desenhos já foram expostos em diversas galerias e museus ao redor do mundo, como o Smithsonian National Portrait Gallery, em Nova York e a Tate Gallery, em Londres. Ele afirmou várias vezes que “The wall” foi o seu maior trabalho, tanto o filme como os cenários dos shows, a arte do álbum.

Sobre o show, Roger Waters comenta que “é uma mistura de coisas da minha longa carreira. Coisas dos meus anos com o Pink Floyd e também algumas coisas novas. Provavelmente, 80% são materiais antigos e 20% novos, mas tudo será conectado por um tema geral. Será um show legal, eu prometo! Será espetacular como todos os meus shows foram”, afirma o músico. Tem razão. Quem assistiu a um show dele não se esquece nunca mais, este menos ainda. 

Culto, politizado, “confusionista” crônico, é feroz opositor de Israel e sua política em relação à Palestina. Em São Paulo, projetou nos telões frases contra o neofascismo e a marca #EleNao, debaixo de aplausos e vaias. Sempre foi um democrata ferrenho, radical. Em “The wall”, questiona corajosamente a sanidade do poder e homenageia a fortíssima figura do seu pai, Eric Fletcher Waters (presente em todos os seus discos), soldado que morreu lutando na II Guerra Mundial. Aborda o flagelo das drogas, do fascismo, de todos os muros que cercam o planeta, da corrupção aos regulamentos sociais. Esse é o muro do de 1979.

O maior sucesso de rádio deste álbum foi “Another brick on the wall” (“outro tijolo no muro”), cantado em parte por um coral de crianças, que diz: “Não precisamos de nenhuma educação/ Não precisamos de controle mental/ Chega de humor negro na sala de aula/Professores, deixem as crianças em paz/ No fim das contas, era apenas outro tijolo no muro/ Todos são somente tijolos na parede.” A música foi censurada em todas as rádios da Grã-Bretanha.

Com a queda do Muro de Berlim, “The wall” ganhou novos contornos e abordagens. Os shows ganharam outros ingredientes, novos adendos, mais agressividade. Roger Waters não nega a sua agressividade que, no passado chegou a ser brutal. Em Berlim, ao vivo, ele defenestrou a tirania da União Soviética, que escravizou muitos povos durante muitos anos, especialmente no Leste Europeu. O muro precisava cair.

Nessa turnê “Us + Them”, Waters luta contra mais um muro, o que Donald Trump - a quem chama não carinhosamente de “porco” - quer construir na fronteira dos Estados Unidos com o México. Em todas as cidades próximas à fronteira onde tocou, Waters fez verdadeiros comícios durante os shows com críticas profundas ao “apartheid” de Trump. No telão, o presidente americano ganhou batom e corpo suíno, pouco antes de o porco inflável começar a voar sobre a plateia com mensagens de protesto. Mensagens pró-feminismo, refugiados, meio ambiente e uma imensa frase em português: “Trump é um porco.”

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Waters assume a liderança de todos os aspectos de seus espetáculos, tais como roteiro, iluminação e cenografia (Foto: Reprodução)

Perfeccionista ao extremo

Os shows de Roger Waters são maratonas sensoriais capazes de levar milhares de pessoas a uma imersão rara. O próprio músico escreve o roteiro como se fossem peças de teatro, planeja tudo, escolhe cada instrumento, cada detalhe de luz, dá muita atenção à cenografia. O perfeccionismo de Waters é conhecido mundialmente desde as gravações do primeiro álbum do Pink Floyd, “The piper at the Gates of Dawn”, em 1967.

O Pink Floyd gravou o álbum de estreia (dez das onze faixas são de Syd Barrett) em um estúdio da Abbey Road. No estúdio ao lado, os Beatles gravavam “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band”. Volta e meia, Paul McCartney ia visitar a nova banda, conversava com os músicos que mostravam alguns trechos já gravados que o impressionaram muito. Macca sabia que aquela era a banda que assistira, tempos atrás, no UFO. Também sabia que, naquele instante, nascia o som do futuro, mas estava mais convicto ainda de que “Sgt. Pepper’s” estava no caminho certo para se tornar um marco musical do século XX. Como aliás, mais tarde, o Pink Floyd também se tornou.

O segundo álbum do Floyd, “A saucerful of secrets“ (1968), foi gravado antes e depois da saída de Syd Barrett do grupo. David Gilmour foi recrutado em janeiro de 1968 o que faz do álbum o único em que todos os cinco membros da banda estão juntos.

Roger Waters e David Gilmour formaram uma das mais importantes duplas de compositores de todos os tempos. Eles se equilibravam. Gilmour com a voz mais doce, o inigualável timbre de guitarra que o faz um dos melhores do mundo. Waters, ao contrário, tem a voz gritada, desesperada, apoiada numa levada de baixo seca, marcada, rígida. Algumas vezes confessou “eu sou insuportável” e, no final de turnê de lançamento de “The Wall”, final de 1981, a banda lançou seu último álbum o obscuro e melancólico “The final cut” (1983) onde praticamente só a voz dele aparece. Mais: Waters compôs todas as 13 faixas.

O clima entre ele e David Gilmour caminhava para um abismo próximo e acabou nos tribunais. Ambos disputavam o nome Pink Floyd, que, na verdade, deveria ter pertencido a Syd Barrett que o inventou. Como Gilmour, Rick Wright e Nick Mason formavam maioria, Waters perdeu a marca e até hoje diz que o Floyd “foi mais uma banda pop que passou por aí”.

O artista estudou detalhadamente o Maracanã, plantas, mapas, para agendar o show lá. Acha que pode ser um dos melhores de sua vida, algo que o público não irá esquecer jamais. Tudo indica que tem razão.

*Jornalista

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SERVIÇO

Roger Waters Us+Them -Dia 24/10 (quarta), às 21h - Estádio do Maracanã (R. Professor Eurico Rabelo, Maracanã)

Abertura dos Portões: 17h - Capacidade: 66.400 pessoas - Ingressos: de R$ 110 a R$ 720

Classificação etária: 16 anos (de 10 a 15, só em companhia de um responsável)

Reprodução - Waters (no alto), com a formação mais famosa da banda: Nick Mason (E), David Gilmour (C) e Rick Wright (E)
Reprodução - Waters assume a liderança de todos os aspectos de seus espetáculos, tais como roteiro, iluminação e cenografia