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Amar, um verbo de Luz, câmera, ação!

Um dos mestres do cinema francês, Philippe Garrel ganha retrospectiva no Brasil, no CCBB, que comemora seus 70 anos de vida e militância na love story

divulgação -
PHILIPPE GARREL CINEASTA
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Entretido com um pratão de alface, palmito e lascas de parmesão, numa bodega em Cannes, à beira-mar, Philippe Garrel percebeu o olhar fascinado de um grupo de gatos pingados que, no fim de noite da Croisette, em 2017, era tomada de assalto pela presença inusitada daquele mestre da direção em um restaurante furreca do balneário francês. Estavam ali uns quatro cinéfilos notívagos e este representante do JORNAL DO BRASIL, que ainda digeria a força plástica do filme mais recente de Garrel: “Amante por um dia”. Dois cineastas americanos, os irmãos Josh e Benny Safdie (de “Bom comportamento”) souberam que ele estava dando sopa por ali e passaram para tietar o realizador de cults como “Amantes constantes” (prêmio de melhor diretor e de melhor fotografia no Festival de Veneza de 2005). No que os Safdie saíram, o JB se arriscou a prestar reverência, pescar um autógrafo num guardanapo e pedir os contatos do cineasta que completou 70 anos no último dia 6 de abril. A data vai ser comemorada só agora no Brasil, a partir do dia 17, quando o Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB-RJ) inicia uma mostra com as joias da carreira de Philippe.

Há tempos, anda filmando com os filhos, o ator e também diretor Louis Garrel e a atriz Esther Garrel. Ela debutou sob as instruções dele em “Inocência selvagem” (Prêmio da Crítica em Veneza, em 2001). Já Louis fez com ele títulos aclamados como “O ciúme” (2013) e “Um verão escaldante” (2011). Ambos estarão no evento do CCBB, que junta 24 filmes do cineasta, sob a curadoria de Maria Chiaretti e Mateus Araújo, em projeção até 5 de novembro. Vai ter mostra no CCBB Brasília também, de 30 de outubro a 18 de novembro.

Na abertura da retrospectiva em solo carioca, às 17h30, será exibido o primeiro longa do cineasta, “Marie pela memória” (“Marie pour mémoire”, 1967), sobre o amor proibido entre um jovem conhecido como Jesus e uma moça chamada Maria. Entre os títulos imperdíveis estão: “A cicatriz interior”, 1972 (dia 18); “Beijos de emergência”, 1989 (dia 20); “O vento da noite”, 1999 (dia 22); e “A fronteira da alvorada”, indicado à Palma de Ouro de Cannes, em 2008 (dia 24 – na mesma data, vai ter sessão de “Os amantes constantes”).

Essa retrospectiva se desenrola ao mesmo tempo em que ele prepara um novo longa, que mantém em sigilo. Quem faz barulho lá fora é Louis, que acaba de ganhar o prêmio de melhor roteiro no Festival de San Sebastián, na Espanha, com seu novo filme como realizador: “L’homme fidèle”. “Louis está trilhando seu próprio caminho, consciente da história do cinema”, elogia Philippe, com orgulho de sua cria.

Na entrevista a seguir, feita por telefone diretamente de Paris, explica a gênese de sua estética.

JORNAL DO BRASIL: Qual é a dimensão política de um cinema que nasce no fervor de 1968 e se mantém fiel à cartilha da liberdade autoral?

PHILIPPE GARREL: Você acredita que alguém, hoje, diante da conjuntura da indústria cultural, daria dinheiro para Glauber Rocha, se ele estivesse vivo, para fazer um filme como “Terra em transe”? Isso não aconteceria pois vivemos tempos apolíticos. E olha que Glauber foi um dos grandes. Existe política em Godard. No meu cinema, existem histórias de amor: mas, a partir delas, eu observo e disseco relações de poder. Sou filho de um ator, Maurice Garrel, que lutou pela libertação da França nos tempos sombrios da guerra e me ensinou a sempre flagrar o fascismo, a rejeitá-lo. Sei que vocês estão passando momentos difíceis aí no Brasil, em seu processo eleitoral, com o avanço de forças fascistas. Mas minha formação, ainda adolescente, na Cinemateca Francesa, abriu o meu caminho para filmes que transcendem a realidade.

A Nouvelle Vague, o movimento que modernizou o cinema francês, entra como em sua vida? O senhor se reconhece como parte dessa linhagem desenvolvida por Agnès Varda, François Truffaut, Eric Rohmer & cia, mesmo tendo iniciado seus longas quando essa turma já somava quase uma década de carreira?

Da minha geração, Jean Eustache (diretor de “A mãe e a puta”, que cometeu suicídio em 1981) era quem mais se aproximava da Nouvelle Vague. Eu comecei depois, mas estou ligado àquele movimento pela minha relação com Godard, como discípulo dele.

Há uma brincadeira entre cinéfilos brasileiros em que se pergunta: “pra que serve um Godard?”. Eu lhe estendo a pergunta: o que representa a obra do diretor de “Acossado”?

A certeza de que o capitalismo nos oprime. Admiro sinceramente o que ele faz, pois, até hoje, ele ainda tem muito a dizer.

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PHILIPPE GARREL CINEASTA (Foto: divulgação)

Influência do cinema mudo

Como foi sua educação cinematográfica antes de Godard?

Quando garoto, a Cinemateca Francesa, sob os cuidados de Henri Langlois, um de seus fundadores, permitiu que eu conhecesse diretores como (Eric von) Stroheim, Abel Gance e o Luis Buñuel da fase surrealista, com “O cão andaluz”. Eu estava ali diante da criação poética da imagem em movimento como linguagem. E foi o cinema mudo que me encantou, por suas formas de trabalhar o preto e branco, pela maneira de fazer do silêncio uma forma de discurso sensível. Falo aqui de ficção, mas os documentários de Robert J. Flaherty feitos nos anos 1920 e 30 também tiveram muito impacto em mim, como o belo “Nanook do Norte” e “Os pescadores de Aran”. E ali eu cheguei à ideia do cinema de poesia.

O que o preto e branco representa para o senhor como ferramenta, como linguagem?

Frequentei a Cinemateca e o Louvre em paralelo, o que me fez entender o cinema como a arte pictórica que vem na sequência da pintura. O preto e branco me remete aos filmes que me formaram, aos tesouros da era muda, permitindo que eu os homenageie ao mesmo tempo em que liberto o espectador dos vícios do real, para soltar seu imaginário.

E por que a insistência no amor, como seu tema de investigação?

O grande tema da literatura são histórias de amor de fundo histórico. Em “Amantes constantes”, eu revivo um tempo que conheci bem, 1968, e, ao voltar a ele, à luz da memória sensível, percebo que o discurso da história mente: ele é interpretação, não vivência. Se abordo a história pela chave do amor, não importa a mentira: importa a permanência e a universalidade dos sentimentos. Aí, cinematograficamente, eu posso fazer a história avançar, indo pelo terreno dos sentidos, das vivências.

Ao olhar o passado, o senhor mencionou a expressão “cinema poético”. É o que sua obra produz?

É o que vi Jean Cocteau e Pier Paolo Pasolini fazerem. Quando eu tinha uns 13 anos, descobri Rimbaud. A beleza de seus versos me levou a um lugar de absoluta liberdade. Um filme ganha uma dimensão de poema quando provoca essa sensação.

Existe algum cinema vívido hoje na França?

Leos Carax, sem dúvida alguma. Ele é grande desde “Boy meets girl”. Tem muita exuberância em seu “Holy motors”. Também gosto muito de Arnaud Desplechin e sua aposta em um cinema de afetos. Eu não conheço o cinema do Brasil além da obra de Glauber, de que gosto muito. Torço para que ainda haja liberdade autoral aí.

Tem filme novo a caminho?

Tem, mas ainda não posso falar o que é. Só tenha certeza de que é um olhar honesto sobre a vida, sobre os sentimentos, sem compromisso com as demandas do mercado e atento às possíveis mentiras inerentes ao olhar histórico. Cinema pautado pelo imaginário, para libertar. *Roteirista e crítico de cinema