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Literatura: Família Romanov, crônica de uma chacina anunciada

Divulgação -
O último Tsar
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Em seu livro “O último Tsar” (478 págs., R$ 63,12), editado pela Difel, o historiador inglês Robert Service conta como Nicolau II e sua família viveram os derradeiros 16 meses de sua existência, desde a abdicação do ex-soberano em 15 de março de 1917 até a chacina no porão da casa dos Ipatiev, em 17 de julho de 1918, ou seja, há pouco mais de cem anos. Service foi estimulado a contar essa história ao descobrir em 2013 que havia em um cofre no Arquivo da Hoover Institution documentos referentes aos Romanov e, em 2014, ao se deparar, na mesma instituição, com o “dossiê sobre o Tsar”, coleção de Agnes M.Diterikhs resultante da investigação realizada entre 1918 e 1920 a respeito do massacre em Ecaterimburgo, nos Urais siberianos.

Mesmo com o leitor sabendo desde o início que o final do Tsar, de sua mulher Alexandra, das quatro filhas, Olga, Tatiana, Maria e Anastácia, e do filho hemofílico Alexei será trágico, o autor inglês consegue criar um clima de suspense ao descrever todos os passos dados pelo Governo provisório e pelo Soviete comunista até chegar à fatídica madrugada do dia 16 de abril para 17 de abril. Service nos poupa dos detalhes escabrosos. O que importa para ele, muito mais do que se envolver com sangue, ossadas e pedaços de carne humana, que seriam incineradas e jogadas em poços de minas, é tentar provar que Lenin e outros dirigentes russos estavam a par do que se passava na casa dos Ipatiev. Já que, segundo depoimentos posteriormente revelados, nos últimos momentos houve uma troca de telegramas e as mortes poderiam ter sido impedidas, caso Lenin e outros líderes comunistas assim o desejassem.

As descrições de Nicolau II são as mais imparciais possíveis. De acordo com o autor inglês, o Tsar era um homem de trato difícil, inflexível politicamente, antissemita, limitado intelectualmente, mas que amava apaixonadamente a mulher e os filhos, a pátria Rússia e as tradições. Até o final de sua vida, não entendeu direito porque caiu, mas aceitou a abdicação sem muita revolta, por considerar que seria necessária para que a Rússia pudesse ganhar a Primeira Guerra Mundial. Odiava a Alemanha, apesar de ter se casado com uma princesa alemã, pois Alexandra era uma princesa de Hasse.

Avesso a monarquias constitucionais, considerado sanguinário por seu povo, pois mandava prender e matar os que contra ele se rebelavam, Nicolau, no entanto, poderia ter no trato doméstico aspectos doces, sabendo ser gentil quando queria. Tanto que conquistou muitos de seus carcereiros, entre eles Alexandre Kerensky. Um dos seus aspectos mais fracos era a mulher Alexandra, que muitos dos observadores de seu tempo consideravam que o dominava até mesmo nas decisões políticas. Foi ela a principal responsável pela aproximação da família com Rasputin, por crer que o monge místico era a única pessoa capaz de acalmar as dores de seu filho hemofílico.

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O último Tsar (Foto: Divulgação)

Tsarskoye Selo, Tobolsk e Ecaterimburgo

O livro começa com um retrato de Nicolau e com a situação revolucionária que o levou à abdicação. De acordo com Robert Service, Nicolau II era baixo e de frágil compleição. Tinha um traço asceta na personalidade. Fazia de duas a quatro horas de exercício ao livre, não gostava de luxos, comia frugalmente e raramente bebia. Amava Tchaikovsky e se considerava a quintessência do verdadeiro russo, tendo trocado os trajes oficiais da corte por vestimentas usadas no reinado do imperador Alexei, fundador da dinastia Romanov. Cristão convicto, por ter nascido no dia santo de Jó, acreditava estar condenado pelo destino.

Quando abdicou, não quis deixar o cargo para o filho Alexei, devido à hemofilia do herdeiro. Descobriu que se Alexei se tornasse Tsar e o irmão Mikhail o regente, teria que se afastar do filho. Por isso optou pelo irmão. Mas este também declinou do cargo. Veio a República e seria formado o Governo Provisório, composto por mencheviques, bolcheviques e socialistas revolucionários. O líder seria Alexandre Kerensky. Foi Kerensky quem lidou com Nicolau e sua família enquanto estiveram aprisionados em Tsarskoye Selo, o Palácio de Alexandre que ficava a poucos quilômetros de São Petersburgo ou Petrogrado. Apesar de se encontrarem aprisionados, os Romanov ainda viveriam neste palácio uma vida principesca: comida farta, muitos criados, direito à prática de exercícios, leituras, lazer, idas à missa. Foi levantada a hipótese de se asilarem na Inglaterra, o que infelizmente não viria a acontecer. As comodidades foram reduzidas drasticamente, porém, quando o Governo Provisório, temendo os distúrbios que vinham ocorrendo em Petrogrado, resolveu transferir a família imperial para um local mais remoto, na Sibéria, onde ficasse mais bem resguardada.

A Crimeia, onde se encontrava a mãe do Tsar, Maria Feodorovna, foi descartada, por ter se tornado uma espécie de refúgio dos nobres. O local escolhido para a nova residência de Nicolau e sua família foi Tobolsk, cidade localizada no oeste da Sibéria. Selecionaram para novo cativeiro a confortável Casa do Governador, que passaria a ser chamada de Casa da Liberdade, apesar de que liberdade, é claro, lá não existia. Se na Casa da Liberdade a situação pioraria para os Romanov aprisionados pelo Governo Provisório, se tornando mais claustrofóbica, ainda assim ainda estavam longe de ter chegado ao fundo do poço. Kerensky escolheu para encarregado do confinamento o veterano Vasily Pankratov, ativista político que havia passado anos na prisão devido ao assassinato de um policial, mas que se demonstraria mais amigo de Nicolau do que se poderia esperar. Os dois tinham um ponto em comum: o amor pela pátria.

Sydney Gibbes e Pierre Gilliard, que davam aulas às crianças, ficaram impressionados como a família tentava levar uma vida normal dentro das circunstâncias. O jardim da casa era uma válvula de escape das energias represadas. Nicolau lia muito. À noite, lia em voz alta para a família. E chegou a participar de uma apresentação teatral, fazendo o papel de protagonista em “O Urso”, de Anton Tchekov. Os mais jovens gostavam de cuidar dos animais, e havia no jardim uma quadra de tênis, mas sem rede. Nicolau ainda conseguia fazer seus exercícios diários e a família tinha o direito de ficar na varanda da casa e olhar a rua. Estavam, porém, proibidos de caminhar pelas ruas. O único passeio era a ida à igreja. As finanças não andavam nada bem – um empresário ajudaria com um empréstimo - mas as refeições ainda seriam fartas.

Só que veio a Revolução de Outubro e o cerco sobre os Romanov se fecharia por completo, até o seu trágico destino.

Casa dos Ipatiev, o terror

Após a tomada de poder pelos bolcheviques, em fins de outubro de 1917 ou 7 de novembro, pelo calendário gregoriano, inicialmente Pankratov ainda cuidaria dos Romanov, ele e Eugene Kobylinsky, o comandante do destacamento militar responsável pela guarda do ex-imperador em Tsarskoye Selo e Tobolsk. Lenin e Sverdlov, líderes da Revolução de Outubro, tinham coisas mais importantes para cuidar. Mas com a assinatura da paz com a Alemanha e o Império Austro-Húngaro pelo tratado de Brest-Litovski, os muitos confrontos armados ocorridos nos Urais, a proximidade das tropas tchecoslovacas e os boatos de que os Romanov seriam resgatados por monarquistas, os bolchevistas perderam a confiança em Tobolsk como local de detenção e a cidade de Ecaterimburgo passou a ser considerada o melhor lugar para o cativeiro, até que Nicolau fosse levado para Moscou para ser julgado. Pois havia esta ideia, a de um julgamento... Por instruções enviadas de Moscou em 9 de abril de 1918, o presidente do Comitê Executivo do Soviete Regional dos Urais, Alexandre Belobodorov, passaria a ser o principal custodiante do ex-imperador. Para supervisionar a transferência dos cativos para os Urais, foi designado Vasily Yakovlev.

Aqui o livro de Service chegará a seu ponto alto. Yakovlev, prevendo o pior, se insubordinará e tudo fará para evitar a ida dos Romanov para Ecaterimburgo. Ele teria recebido a ordem de transferência em 24 de abril de 1918. Viajariam com ele apenas Nicolau, Alessandra e Maria. Os demais Romanov ficariam em Tobolsk, fazendo companhia ao doente Alexei. Yakovlev tentará enviar a “bagagem”, como os Romanov eram chamados pelos dirigentes comunistas, para Omsk, lugar que considerava menos perigoso do que Ecaterimburgo. Infelizmente perderá a disputa. Esta será vencida por Beloborodov, que chegará a considerar Yakovlev, ao final do incidente, um traidor da revolução. Após ditos e não ditos, Sverdlov optaria por Ecaterimburgo como destino final para os Romanov. E lá a família se reuniria e seria morta na Casa dos Ipatiev, cujo dono era um rico engenheiro que teve que ceder sua residência aos bolchevistas.

A morte dos Romanov também seria uma decisão do líder soviético dos Urais, Beloborodov. Mas é claro que não a tomou sozinho. Todos os membros do Comitê Executivo do Soviete Regional dos Urais eram a favor do extermínio da família imperial. Se houve alguma discussão, foi a respeito de como fazê-lo. Optou-se pela morte por tiros de revólveres no porão. Faltava apenas a aceitação de Moscou. É ai que entra em cena o telegrama enviado pelo Soviete dos Urais para Moscou, que retornaria com um sinal verde para o assassinato. Infelizmente esta mensagem nunca foi encontrada, mas Robert Service refuta por completo a possibilidade de que Lenin e outros dirigentes comunistas sediados em Moscou não soubessem o que estava ocorrendo em Ecaterimburgo.

“Em Moscou, houve intensa movimentação quando Lenin e Sverdlov se reuniram para consultas mútuas antes de entregarem uma mensagem a um dos guarda-costas de Lenin, A. I. Akimov, que a levou de motocicleta pra o edifício central da telegrafia por ordem de Sverdlov, o qual mandou que ele agisse com excepcional discrição e trouxesse a cópia e a fita do telegrama. Quando o telegrafista se recusou a obedecer, Akimov o intimou sacando o revólver. O telegrama foi enviado a Ecaterimburgo pela mesma rota sinuosa, via Petrogrado e depois Perm. Nenhum vestígio da mensagem jamais veio à tona. Não existe, portanto, nenhuma confirmação de que Lenin e Sverdlov tenham ordenado a execução de Nicolau e de sua família. Isso foi premeditado. ”

Por esse e por outros detalhes, como as leituras de Nicolau, entre elas a de “Guerra e Paz”, de Tolstoi, o livro de Robert Service merece ser lido. Mas aviso tratar-se de uma obra declaradamente antibolchevista, nada simpática a Lenin, homem que Service considera ter sido capaz de imensas crueldades, como foi o caso das mortes de praticamente todos os demais membros da família dos Romanov, primos e tios inclusive. Maria Feodorovna, a imperatriz viúva, mãe de Nicolau II, foi uma das poucas sobreviventes da matança geral.

*Jornalista e escritora