Era um domingo de uma manhã chuvosa, com muito cuidado em um caminho estreito, íngreme e escorregadio, subi com um grupo de jovens da Rocinha para levar uma doação de roupas e agasalhos aos moradores da Macega. O percurso com degraus irregulares, com lixo e molhados da chuva e do esgoto dificultavam a subida. Para levar parte das doações recorremos aos homens que fazem o serviço de carregador na entrada da rua 1.
Chegamos no lugar conhecido como campinho na Macega, todos já nos olhavam e sabiam que não éramos dali. Fomos recebidos com muita alegria e logo os moradores falaram: "que bom que vocês vieram, nós somos esquecidos aqui". Começamos organizar as roupas, mas a ansiedade dos moradores em receber era maior. Pedimos calma e assim eles se organizaram e, já selecionavam com os olhos as roupas que iriam pedir.
Pronto, estava liberada a doação. Em meio a um clima descontraído os moradores competiam para pegarem os agasalhos e roupas. Com sorriso no rosto eles brincavam com os problemas e escolhiam suas roupas. A maioria eram mulheres e, é claro muitas crianças. Algumas sozinhas pegavam roupas para os demais familiares.
Eram muitas as crianças, pena não tínhamos muita roupa para os pequenos. Tinha de bebês até os mais grandinhos. A criançada estava contente brincando e dividindo dois pratos cheios de miojo, cada um dava uma colherada. O último fez questão de lamber o prato e sugar o último caldinho do macarrão instantâneo que havia sido preparado.
Eram mais de 20 sacos grandes com roupas que aos poucos foram sendo levadas. Cada um escolhia e já dizia onde pretendia usar. Uma mulher disse que ia usar para ir à igreja, outra para ir em um bar onde costuma dançar, um homem pegava roupas para trabalhar e assim cada um pegou o que servia. Todos agradeciam com palavras ou até mesmo com os sorrisos estampados no rosto. O pedido que fizeram era pra que nós voltássemos em outras épocas.
Por fim fomos visitar a casa de uma senhora. Ela era moradora de um dos barracos construídos de madeira, onde reside com o marido e o filho de 11 anos. Sem água encanada, sem saneamento e com um risco de desabamento a qualquer momento, a senhora mostrava seus exames que indicavam duas infecções e hepatite. Pedimos para mostrar a casa, ela e o filho, muito educado e simpático relataram os problemas e contaram sobre o episódio da árvore que caiu em cima do barraco e como se salvaram. A criança, infelizmente está sem estudar, assim como algumas outras desta localidade.
Esse é apenas um relato, um fragmento das muitas histórias que representam a vida dos moradores da Macega. Um lugar que até os dias de hoje o poder público não se fez presente. Infelizmente, centenas de famílias residem em um lugar abandonado e sem estrutura. A esperança é o que mantem vivas as muitas vidas e sonhos que ali habitam. Tanto dinheiro, tanta corrupção, e não precisa ir muito longe para assistir a miséria, ela está bem pertinho entre bairros nobres da cidade maravilhosa.
* Davison Coutinho, morador da Rocinha desde o nascimento. Bacharel em desenho industrial pela PUC-Rio, Mestrando em Design pela PUC-Rio, membro da comissão de moradores da Rocinha, Vidigal e Chácara do Céu, professor, escritor, designer e liderança comunitária na Comunidade.