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Bom mesmo é ser infeliz

xxxxxx Miguel Paiva xxxxxxx -
(ilustração da coluna do Miguel Paiva, pág 2 Cad B de domingo)
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Temos o péssimo hábito de nos habituarmos às coisas ruins. Valorizamos elas, até. As coisas boas passam batido, como se fosse parte do nosso destino não sermos felizes. A saúde e a normalidade, digamos assim, não têm charme, não provocam frisson nem causam fortes emoções. Já o sofrimento, a depressão, o ódio, a inveja e todos os sentimentos condenáveis pela sociedade têm um lugar cativo nos nossos corações. Parece que viemos ao mundo com a missão de buscar a infelicidade a qualquer custo. Da boca pra fora não admitimos isso, pelo contrário, saímos por ai gritando a meio mundo que queremos a felicidade. O problema é que ela não existe como um todo. Existem momentos felizes, coisas que nos deixam felizes, lembranças felizes, paisagens que nos remetem a situações felizes, e por aí vai. Ninguém aguentaria viver o tempo todo em total felicidade. Morreria de tédio ou de infelicidade. Daí, quando nos deparamos com coisas ruins na vida, logo nos apegamos. Um pouco como desafio existencial para provarmos como somos capazes de superá-los.

Macaque in the trees
(ilustração da coluna do Miguel Paiva, pág 2 Cad B de domingo) (Foto: xxxxxx Miguel Paiva xxxxxxx)

Tentem usar essa chave de interpretação baseada nas minhas reflexões de cabeceira antes de o sono chegar e vejam se isso não explica um pouco nosso comportamento coletivo. Aqui, nesse nosso Brasil varonil, oba! a infelicidade é uma conquista. As situações ruins que o país vive, as barbaridades cometidas por quem tem o poder, a violência, o descuido, o abandono, a falta de autoestima acabam fazendo parte do nosso cotidiano e entram nos nossos hábitos com maior rapidez.

Nos acostumamos com tudo, menos com o que é bom. Passamos nas ruas esburacadas todos os dias e só sacudimos a cabeça. Usamos um transporte público de péssima qualidade e só sacudimos o corpo pelos solavancos. Lemos as notícias mais terríveis e só fechamos os olhos para virar a página do jornal.

Assistimos estarrecidos à tragédia criminosa de Brumadinho e só nos lembramos da de Mariana, que, na realidade, estava quase esquecida. Tirando alguns poucos heróis da resistência que continuavam a postar mensagens, o grosso da população já mantinha Mariana num lugar distante da memória. E se não tivesse acontecido Brumadinho, daqui a pouco Mariana seria só um nome. As coisas ruins acontecem para nos mostrar que muitas delas podem ser evitadas. Se outras coisas ruins não tivessem entrado no hábito nocivo das pessoas.Não julgamos devidamente os militares que cometeram crimes no período da ditadura, como fizeram a Argentina e o Uruguai, e continuamos sendo assombrados pela possibilidade da volta deles ao poder. Não mudamos a Justiça e continuamos reclamando dela quando ela solta um suspeito ou mesmo um criminoso. Não nos dedicamos a mudar o panorama da educação no país e achamos que a solução para a violência será dar armas para o cidadão.

É isso. Nos ligamos mais nas coisas ruins que nos redimensionam diante das dificuldades do que nas coisas boas que, no fundo, só precisam ser vividas. Exigem sabedoria, autoestima e serenidade. Ser feliz é chato. Bom mesmo é ter problemas porque nascemos com essa culpa atávica da civilização judaico-cristã ocidental e não podemos estar de bem com a vida. Por que sempre que estamos bem, felizes, num raro momento de plenitude, achamos que algo ruim vai acontecer? É porque não dá pra ser feliz impunemente. Na vida, não tem Happy End. O verdadeiro The End é a morte. Melhor viver esse filme antes que acabe.