ASSINE
search button

Recaída

Miguel Paiva -
.
Compartilhar

Há muito tempo não tínhamos um início de mandato com tantas surpresas, declarações bombásticas e desmentidos. Para nós, cartunistas, é muito material, desde que esse material não vire argumento para justificar cerceamentos futuros de liberdade. Bolsonaro mente e desmente, Faustão fala e depois tenta se justificar, mas se enrola mais ainda. O buraco do Brasil é muito mais embaixo. Desse Brasil profundo, então, é quase imperceptível. Não tenho medo do recrudescimento do regime ou coisas parecidas com o que vivemos há 50 anos. Tenho mais medo da mediocridade. O autoritarismo vive um momento de esplendor mas de altíssima fiscalização também. Poucos são os regimes autoritários que bancam seu estado e enfrentam o resto do mundo sabendo do seu destino de isolados. Mas bancam. Não acho que o Brasil queira isso. Na época da ditadura, a informação era vigiada e censurada. Fiz parte do “Pasquim” quando a redação toda foi presa em 1969. Alguns poucos foram poupados com a tarefa de continuar fazendo o jornal. Não se podia anunciar a prisão. Inventamos uma gripe generalizada para justificar a ausência da patota. Claro que funcionou até um certo ponto. Eu desenhava imitando mal e porcamente Ziraldo, Jaguar e Fortuna. Chico Jr. escrevia como Tarso e Paulo Francis, Martha Alencar tentava editar o jornal e Millôr e Henfil ficavam na retaguarda ideológica segurando as poucas pontas que restavam. Foi difícil, mas o jornal sobreviveu. Hoje a informação corre mais solta. A internet é uma realidade indiscutível. Qualquer bobagem que se diga ou se faça acaba virando meme e todo mundo fica sabendo. Endurecer um regime num país como o Brasil só com o apoio maciço da população. Mas não foi isso que a eleição mostrou. Mostrou uma população que em parte queria o Bolsonaro, uma parte que não queria o PT, uma boa parte que ainda queria o PT e o resto que preferiu ir para a praia. O resultado está aí.

Macaque in the trees
. (Foto: Miguel Paiva)

Essa bateção de cabeça, essa terceirização do governo, esse presidente que adorou o palanque e não quer descer e um Brasil que olha perplexo para isso tudo.

Tenho medo da mediocridade que fez escolher esse ministério com quase nenhuma exceção. A ministra Damares, que prefere uma administração baseada em cores, a um ministro do Exterior que assume as trevas como a época de maior inspiração para um economista que tem, parece, como maior adversário, o próprio presidente. Um quer fazer, errado ou certo, e o outro quer falar. Uma política econômica neoliberal não visa o bem-estar dessa população carente que em parte ajudou a eleger o presidente. O povo está lá atrás na fila de prioridades da política neoliberal. Nos primeiros lugares, estão empresários, banqueiros, investidores que ainda hão de brigar muito por esses lugares da fila. O povo, nesse Brasil que não termina mais, vai continuar assistindo esse outro Brasil que vive nos grandes centros, palpita, emite opiniões, decreta, acusa, determina e pontifica sem saber o que se passa no resto do país. Somos um país afortunado, mas somos um país à beira de ataque de nervos. Podemos cair num marasmo de mediocridade que nem mesmo os mais ardentes defensores da direita, da meritocracia ou do neoliberalismo vão conseguir explicar. Espero que tudo isso continue dentro de um regime democrático. Outra gripe não vamos aguentar e não vai haver antibiótico suficiente para nos curar.