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Uma família sintonizada

Miguel Paiva -
Uma família sintonizada
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Macaque in the trees
Uma família sintonizada (Foto: Miguel Paiva)

Os despertadores dos celulares tocaram quase ao mesmo tempo para acordar a família Silva que começaria o dia em seguida. Os Genitores Silva, mesmo dormindo juntos, usavam despertadores celulares separados. Pai Silva mandou uma mensagem de bom dia para mãe Silva que respondeu com um coração e um sol. Mãe Silva se fechou no banheiro do casal e usou sua escova elétrica, seu massageador de pele e a água hidrogenizada que mantinha ligada na tomada do banheiro. Enquanto isso, Pai Silva via as notícias nos sites do seu celular. Mandou um Whatsapp para os lhos como de hábito dando bom dia. Deu uma olhada rápida num blog pornô para ver se ainda cultivava seus desejos eróticos, mas a mulher logo abriu a porta e ele se envergonhou. Entrou no banheiro com o celular entre os dedos. Trocaram um sorriso. Sua mulher se vestiu seguindo o planejamento de roupas de trabalho que havia montado e que estava na agenda do celular. Pai Silva ainda demorou consultando as notícias de esporte sentado no vaso como fazia todos os dias.

Os dois filhos rapidamente se juntaram à mãe na cozinha. Filha Silva vestida para a escola com jeans e camiseta e a mochila pendurada no ombro. O fone de ouvido ligado ao celular segurava seus longos cabelos castanhos meio desalinhados pela manhã. Usava óculos e seus olhos sempre olhando o celular quase nunca revelavam o azul profundo da sua cor. Sentou-se à mesa depois de esbarrar na cadeira, balançando o corpo suavemente ao ritmo do que ouvia. Ligou sem olhar a máquina de café, cortou uma fatia de queijo e comeu, sempre no ritmo. Filho Silva abriu a geladeira digitando suas mensagens diárias para os inúmeros grupos que preenchiam a sua vida. Pegou o leite, colocou o Nescau,misturou tudo no copo e tomou. Pausava para digitar sempre de modo ágil e veloz, sorrindo de vez em quando com a marca do leite sobre os lábios. Limpou com um guardanapo de papel enquanto Pai Silva chegava na cozinha.

Vinha com o tablet acompanhando os telejornais da manhã. Pegou uma fatia de pão, sentou-se à mesa, passou a manteiga e sem tirar o olho do tablet variando suas expressões faciais, colocou um pouco daquele mesmo café da máquina na sua xícara. Mãe Silva não usava seu celular no momento. Estava olhando pela janela o sol que já marcava presença nos telhados vizinhos. Sem mudar de expressão pegou o aparelho, bateu uma foto. 

Era uma linda manhã que se via na tela do seu telefone depositado na mesa. Todos admiraram o sol na tela do celular.

De repente, ao mesmo tempo, todos se olharam, espantados. Mexeram nos aparelhos, como se buscassem conexão, mas nada. O sinal tinha caído. Estavam incomunicáveis. Só uma tela inerte, morta, sem sinal. Nem wi-fi , nem 3G, nem 4G. Como podia isso acontecer? Andavam atônitos pela cozinha, a esmo, sem propósitos, como se perdidos dentro da própria casa. O café esfriou, o pão ficou no prato e aquelas quatro pessoas se sentiram abandonadas, solitárias, diante do nada. Foram longos três minutos de quase morte até que um BIP soou do celular da Mãe Silva. Ela olhou rapidamente para a tela e viu o sol. Outros bips apitaram e o sinal voltou. Sorriso de alívio para todos.

Os olhares se cruzaram pela primeira vez. Vida que segue. cada um tomou seu rumo com a certeza de pertencimento ao mundo dinâmico, comunicativo e promissor em que viviam.

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