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A alma enruga antes da pele

Pixabay -
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A frase que dá título à coluna é de Millor Fernandes. Há, ainda hoje, culturas nas quais os mais jovens olham para seus velhos em busca de sabedoria de vida. A alma enrugada, e não a pele, é o que permite aos velhos sábios exercerem a importante função de equilíbrio entre o ímpeto e a imprudência, entre a lei e o afeto.

Macaque in the trees
. (Foto: Pixabay)

Jung pensava que se a natureza não erra, deveria haver uma função adaptativa para o envelhecimento; ele se perguntava: com que propósito a natureza nos manteria velhos por tão longo período de tempo? Pensava ele que a transmissão de uma sabedoria ancestral seria a função adaptativa primordial das rugas da pele e da alma.

Nos dias atuais, em que a inteligência artificial promete superar a inteligência humana, em que a capacidade de armazenamento de informação das máquinas supera em muito a de nosso cérebro, surge uma pergunta inevitável: para que envelhecermos nesse contexto, se a nossa sabedoria já não será mais útil? Não à toa, em nossa cultura ocidental, as pessoas maduras esforçam-se cada vez mais para se parecerem com os jovens a quem deveriam servir como exemplo de maturidade.

Observo em minha prática clínica que a sabedoria ancestral e as almas enrugadas desempenham um fator importante no equilíbrio de famílias inteiras. Observo cotidianamente o papel regulador nas emoções intrafamiliares, desempenhado pelos velhos sábios da família. Há casos nos quais mesmo quando sua pele enrugada já não habita esse planeta, suas rugas na alma ainda inspiram e habitam as atitudes e as formas de viver de gerações.

Não é raro que em momentos de muita aflição e desencontro de si mesmo essas figuras surjam nos sonhos e apontem caminhos. Uma amiga chef consagrada apanhava com a receita de um dos pratos que tornaria o carro chefe de seu restaurante, tentava de tudo e o tal prato não chegava à consistência necessária, para a sua frustração. Após um dia inteiro tentando, ela desiste e vai dormir exausta. Nessa noite, um avô muito querido aparece em seus sonhos e lhe diz com carinho exatamente qual ingrediente faltava em sua receita. Ela acorda de madrugada, vai para a cozinha, testa a “nova” receita e, emocionada, percebe que deu certo. São muitos os exemplos da emergência do velho sábio em nós.

Ao mesmo tempo, observo a falta que essas figuras fazem na vida das famílias, seja quando não estão disponíveis afetivamente, ou quando nunca estiveram de fato presentes. Nesses casos, é frequente surgirem pessoas que tiveram que assumir muito cedo na família esses papéis, que em tese não eram seus. Funcionam como fator de equilíbrio e mediação. Aprenderam a funcionar assim. Conservam ainda a pele intacta, mas carregam rugas na alma.

Gozam de respeito dos familiares, mas, como preço, acabam desempenhando inconscientemente esse papel de mediador em todas as suas relações não familiares: nas relações afetivas, no trabalho e até mesmo nas amizades. Saem pela vida como malabares equilibrando pratos alheios às custas de seu próprio equilíbrio interno.

Talvez Millor Fernandes tivesse uma intenção mais ácida em sua frase do que minha interpretação dela: uma visão negativa de "alma enrugada”. É uma hipótese. Confesso que nutro simpatias por rugas, na pele e na alma.

Recentemente levei um violão antigo para uma restauração: o som já não era o mesmo. O luthier encarregado da função mirou cuidadosamente os trastes, verificou o desalinhamento da ponte, a necessidade de lubrificar as tarrachas, notou um empenamento no braço, tudo com muita minúcia e perícia. Anotou o valor de cada item e, somando as parcelas à moda antiga, me apresentou o orçamento em um pedacinho de papel. Perguntei a ele como ficaria o som depois da restauração. Conseguiria tocar com a sonoridade original? Ele me olhou por cima dos óculos, com um olhar de quem está acostumado a identificar com precisão o que precisa ser reparado, e então respondeu: “O seu instrumento tem história, ele vai soar com a história dele.” Autorizei de imediato o conserto. É preciso soar com a nossa história.

Vale no entanto fazer uma distinção entre história e destino. Temos uma História, mas História não é destino.

História só se transforma em destino quando somos tomados pelos nossos complexos, pelos nossos padrões inconscientes de comportamento. Percebemos isso às vezes, da pior maneira possível, quando, durante uma crise, notamos que repetimos mais de uma vez o comportamento que nos leva sempre ao mesmíssimo beco sem saída. Algo em nós, algo muito forte e muito antigo, nos leva a um lugar onde conscientemente juramos a nós mesmos nunca mais estar. Nesses casos, é recomendável ouvir com atenção o que as rugas da alma têm a nos dizer. Nem sempre dirão o que é confortável ouvir, mas sim o que é necessário e inadiável. A nota desafinada que atrapalha nossos acordes na vida.

Como o filósofo Jean Paul Sartre uma vez disse: “O que mais importa não é o que fizeram a você, mas o que você irá fazer com o que lhe fizeram.”

Nesse final de semana peguei de volta meu instrumento restaurado. Escolhi uma peça de música muito bonita para testar a sonoridade. O som estava ótimo, mas meus dedos um pouco enferrujados. É preciso soar com a nossa história.