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A Catedral de Imagens: ou sobre o perfeccionismo

Reprodução -
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Na cidadezinha de Beaux de Provence, no sul da França, há um espetáculo que acontece nas profundezas de uma enorme caverna escavada nas montanhas de rocha calcária. A altura da caverna é impressionante e lembra uma catedral. Em suas paredes são projetadas imagens gigantescas, uma exposição de arte que muda de tempos em tempos. Quando estive lá há muitos anos, as imagens eram uma homenagem à Veneza, e a música que tocava era Verdi. Vivi poucas experiências artísticas tão emocionantes quanto esta. O espetáculo é apropriadamente chamado de em francês de Catedral des Images ou Catedral das imagens em português.

Macaque in the trees
. (Foto: Reprodução)

A relação do ser humano com as imagens é ancestral. Somos o povo das imagens, muito antes de sermos o povo da escrita. As pinturas rupestres feitas pelos homens pré-históricos são as expressões mais representativas dessa relação arquetípica entre o homem e as suas imagens. Imaginação é o ato de pensar por imagens. Somos portanto, cada um de nós, uma Catedral de Imagens. Não à toa, o gênio Einstein costumava defender que a imaginação é mais importante do que o conhecimento. Nossa vida se enriquece quando conquistamos a capacidade de imaginar, de vislumbrar, de sonhar.

Nossas realizações na vida, sejam elas pessoais ou profissionais, são sempre precedidas pela nossa imaginação: que tipo de relacionamento eu imagino, que tipo de carreira eu desejo? Com que tipo de vida eu sonho? A imaginação é uma das vigas da ponte que liga o desejo à realidade. Uma das caraterísticas da depressão é justamente a perda da capacidade de imaginar, um ressecamento das imagens que colorem a vida. Mas as imagens são sedutoras e podem ser traiçoeiras. Há aqueles que se perdem em sua Catedral de Imagens: ela é tão atraente, tão incomparavelmente melhor do que o real, que tais pessoas acabam desenvolvendo uma grande dificuldade em arriscarem-se fora do mundo perfeito de seu imaginário. O reino imperfeito da realidade acaba tornando-se insuportável. Daí, instala-se um profundo sofrimento. Pessoas com tendência ao perfeccionismo correm o risco de tornarem-se prisioneiros em sua Catedral.

Tão importante quanto a capacidade de imaginar e sonhar, é a necessidade de aceitar as perdas inerentes à passagem do imaginário para o concreto, para o real. O perfeccionista extremado sofre exatamente por não conseguir aceitar essa perda inevitável. Como uma vez cantou o poeta Cazuza, o perfeccionista “fica esperando alguém que caiba nos seus sonhos”. A pessoa real, com suas idiossincrasias, defeitos, e impropriedades; a profissão real, com suas rusgas, atrasos e falhas; a vida real, com o tempo corrido, os boletos infindáveis e os cocôs de cachorro na calçada, acabam sendo um desencanto permanente, um oceano de frustrações. Não é à toa que há grande coincidência entre a procrastinação e o perfeccionismo. O perfeccionista adia ao máximo o encontro, sempre frustrante com o real. Realizar carrega em si uma alta dose de angústia.

Há que se fazer uma diferenciação importante entre o prazer orgânico que extraímos quando realizamos algo que consideramos digno de nota, e o desprazer de sentir que qualquer tarefa, por melhor executada que seja, não corresponde exatamente ao que se sonhou, nesse caso o prazer dá lugar ao desprazer.

No primeiro caso há uma descarga de prazer quando realizamos bem alguma coisa (bem não significa perfeito), seja uma refeição gostosa e bem apresentada, uma execução musical, um livro, uma planilha de orçamento bem feita, um poema, a montagem de uma equação matemática de difícil resolução, um negócio fechado, um livro, uma apresentação profissional bem sucedida, uma viagem há muito tempo planejada, etc. O que todas essas coisas têm em comum é o fato de terem se convertido de imaginação em realidade, ainda que o voo tenha atrasado, o livro não tenha ganhado o prêmio Jabuti, ou o negócio, embora rentável, não tenha atingido toda a lucratividade que a planilha excell apontava.

No discurso do perfeccionista extremado, o real não passa de uma versão pobre do mundo. Acontece que, em muitos casos, o perfeccionismo é apenas um estilo de defesa contra o pavor que o real exerce. Em algum momento o mundo real foi tão massacrante e, eventualmente cruel, que a pessoa precisou mobilizar todos os seus esforços para controlar as variáveis que a ameaçavam. Construiu, “com perfeição”, maneiras de se proteger contra as ameaças desse mundo; construiu o “seu” mundo. Expulsou de si também todos os traços de imperfeição. Imperfeito é o mundo que nunca está à altura de minha imaginação. Imperfeito é o outro que não entende, que não alcança o meu desejo. Não entende porque não habita as minhas imagens, como poderia? Não é difícil imaginar a sobrecarga emocional e a exaustão que o perfeccionismo impõe ao organismo e a psique de uma pessoa, sem que ela tenha consciência disso.

Os templos hindús estão entre as maravilhas arquitetônicas da humanidade. Jung conta em um de seus seminários que há uma curiosidade neles: mesmo com todo o seu esplendor de imagens, sempre é deixada uma parte inacabada, incompleta, imperfeita. É uma mensagem simbólica de que lembra: a perfeição pertence somente ao reino dos deuses. Em sua maturidade Jung apelava às pessoas: “Pelo amor de Deus, não sejam perfeitos, mas tentem de todos os modos serem plenos”.

A mensagem dos hindús é bela: não confundir os dois reinos é o caminho para a sabedoria e para uma vida mais plena, ainda que imperfeita, pois humana.

Psicólogo e Psicoterapeuta de orientação junguiana