ASSINE
search button

E foram livres para sempre

Reprodução -
Harry e Meghan Markle
Compartilhar

No domingo à noite, enquanto zapeava na TV, me vi diante de algo curioso: um dos programas mais tradicionais da televisão brasileira conduzia uma enquete sobre a decisão do casal de príncipes, Harry e Meghan Markle, de se afastarem da Inglaterra e de suas obrigações para com a coroa britânica. E aí, você é a favor ou contra? Essa era a pergunta.

Macaque in the trees
Harry e Meghan Markle (Foto: Reprodução)

É, no mínimo, estimulante tentar compreender por que a realeza britânica exerce tanto fascínio sobre pessoas a léguas de distância física e cultural do Reino Unido.

O que transforma o casamento do príncipe com a princesa da corte da rainha, um tema tão arquetípico, em algo sedutor para tanta gente, a ponto de influenciar a moda, o consumo, o comportamento, os sonhos e expectativas de pessoas em lugares os mais distantes do globo? Umas das respostas é o poder mágico dos contos de fada no inconsciente coletivo.

Os contos de fada condensam temas universais que mobilizam as emoções humanas: amor, inveja, vingança, medo, esperança, violência, felicidade, humilhação, bondade, sabedoria, poder, injustiça, reparação etc.

Na estrutura dessas narrativas, o príncipe, muitas vezes, acaba encontrando seu amor fora da realeza, entre alguém do povo, onde o sangue não é azul. Psiquicamente, esse tema remete à necessidade de renovação. Sem esse “sangue novo”, as estruturas arcaicas correm o risco de colapsarem, de perderem a relevância e a conexão emocional. O mito empobrece e se desfaz.

Assim como a família real britânica, nós nos enrijecemos e desumanizamos a cada vez que perdemos contato com o nosso lado mais autêntico, mais livre e indomável, mais criativo e instintivo. Nos contos de fada, as princesas vindas de fora da nobreza têm esse papel: injetar dinamismo na vida estagnada. Meghan Markle representa, para a coroa britânica, o avesso do avesso do avesso. Nós também precisamos integrar o nosso avesso para não estagnarmos. Precisamos acordar a nossa Meghan.

As "princesas Meghan" funcionam como um lembrete de que a neurose tem como característica repetição de padrões fixos, diante de um ambiente que se transforma e pede adaptação ao espírito do tempo. É do conflito entre a fixação defensiva e o impulso renovador que se abrem as perspectivas para transformar e ampliar ou estagnar e sucumbir.

Se ultrapassarmos a superfície do chá das cinco, o afastamento de Meghan e Harry levanta questões que são confrontos arquetípicos e, portanto, fundamentais: o desejo de independência versus a pressão pela conformidade, a venda da alma pelo poder do prestígio versus a necessidade de liberdade e autonomia, o pedantismo humilhante versus a altivez e o estabelecimento de limites ao insuportável. São dramas humanos nos quais muitos de nós nos reconhecemos em situações cotidianas.

Há grande simbolismo no gesto de Harry e Meghan escolherem o Canadá como destino. Enquanto a Inglaterra votou pelo Brexit, cujo principal mote de campanha foi a hostilidade contra o “outro”, personificado pelos imigrantes, o Canadá, ao contrário, é considerado o país mais livre e tolerante do mundo, que pratica uma política pró-imigração, cultiva a liberdade de expressão, os direitos do ser humano, a tolerância religiosa e a defesa da sexualidade livre. O Canadá simboliza a liberdade do ser.

Inicialmente, o papel arquetípico do casal Harry e Meghan talvez tenha sido o de mero sopro de renovação para uma estrutura envelhecida; no entanto, o novo movimento parece indicar uma virada simbólica rumo à autonomia. Autonomia (auto - próprio / nomos - lei) significa seguir a vida segundo as suas próprias leis e diretrizes, sem dar ouvidos às tradições que “pagam bem”, mas que exigem a alma em troca. Significa alcançar o nosso Canadá interior.

Em escala midiática global, o casal de duques simboliza uma questão humana comum a todos nós, nobres ou plebeus. Quando afirmamos nossa voz e nosso desejo contra a pressão esmagadora de um establishment, seja qual for (familiar, grupal, econômico ou política), temos a sensação antagônica de conquista de liberdade e ao mesmo tempo de expulsão do paraíso.

Todo establishment promete o paraíso, mas em troca nos pede docilidade e submissão. A decisão consciente de rompermos com a infantilização do paraíso nos possibilita crescer, amadurecer e habitar, com verdade, nossas escolhas.

Como Meghan e Harry inegavelmente têm importância simbólica na cultura global de nossos tempos, torço para que esse seja o capítulo de um novo conto de fadas: ao invés de um chato e previsível final feliz, que esse seja um final mais livre, leve e interessante.

Que sejam livres para sempre!

Flávio Cordeiro é psicólogo e psicoterapeuta de orientação junguiana