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Quando o mundo some: o sentido e o ancestral

Mari Lezhava/Pixabay -
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CADERNO B

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Aproveitando o XXV Congresso Junguiano, que ocorreu em Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul, estiquei mais três dias de férias para conhecer esse pedaço do Brasil que me era totalmente estranho até então: a serra gaúcha. Férias são sempre um bálsamo. Elas oferecem um afastamento necessário da realidade cotidiana, que facilita o surgimento de um olhar estrangeiro para aquilo que o poder do hábito e as convenções da cultura acabam transformando em natural e inquestionável. Férias são fundamentais para a capacidade de imaginar.

Macaque in the trees
* (Foto: Mari Lezhava/Pixabay)

Nos passeios pelas vinícolas da serra gaúcha fiz muitas descobertas: a primeira foi a constatação da minha abissal ignorância a respeito da qualidade dos vinhos produzidos no Brasil - um complexo de vira-lata que compartilho com muitos outros compatriotas. As belezas naturais e a prestatividade das pessoas da região - algo que nas grandes metrópoles virou relíquia cultural há tempos, foram outras boas experiências. No entanto, algo de mais profundo me chamou a atenção: a reverência à ancestralidade, quase onipresente, em todos os lugares por onde passei.

Concentrei minhas visitas nas pequenas empresas familiares, algumas das quais sequer são mencionadas nos mapas turísticos da região. Em praticamente todas elas havia uma profunda reverência aos ancestrais: aos avôs e bisavôs, todos imigrantes que desbravaram a terra e abriram espaço para as sucessivas gerações familiares. Jogada de marketing? Não me pareceu. Os avós e bisavós apareciam com muita naturalidade nas conversas: não eram barões do café ou da pecuária, nem figuras distantes ou marciais; ao contrário, eram pessoas simples, humildes, lavradores: gente comum. Não eram mitificados, eram apenas valorizados e lembrados com carinho. Eram presença viva. Por que então me surpreendi? Talvez porque a reverência à ancestralidade tenha se tornado algo em desuso na hipermodernidade. E isso me leva de volta ao Congresso Junguiano.

Uma das mesas mais interessantes do XXV Congresso Junguiano, na minha opinião, foi “Aspectos Emergentes da Família Contemporânea”. Nessa mesa, destaco a fala da analista junguiana Maria Cristina Vieira em “Alguns aspectos da família contemporânea e sua relação com o ancestral”. Maria Cristina argumenta que na modernidade há uma hipervalorização da descendência e uma acentuada desvalorização da ancestralidade. Nesses contexto perde-se de vista o legado e a criatividade do ancestral: o mais velho é visto como despossuído de valor, pois não domina as novas tecnologias, não produz riqueza e pouco agregaria. Abre-se, no dizer de Maria Cristina, um abismo afetivo, onde muitas vezes o mais velho sente-se isolado no próprio ambiente familiar.

Foi o exato oposto do que presenciei nas conversas que tive com os vinicultores de Bento Gonçalves e municípios vizinhos. Não eram infrequentes vinhos feitos com as uvas cultivadas originárias das regiões onde partiram os ancestrais, rótulos homenageando os nonos e nonas, detalhes de como eles desbravaram as encostas dos morros, o tipo de vinicultura que praticavam, a maneira como construíam as casas, feitas de pedra em baixo e madeira em cima, observações sobre como foram conflituosas as mudanças implementadas pelas novas gerações que precisavam se modernizar a produção, sem com isso desejarem perder os laços históricos que os ligavam a sua ancestralidade.

Não foram poucas as vezes em que me pequei pensando na apresentação de Maria Cristina Vieira e no contraste que aquela minha experiência apresentava em relação ao esgarçamento das relações históricas entre as gerações: sente-se no ar e nos vinhos, é claro, a presença do espírito ancestral, reverenciado com alegria e espontaneidade e o melhor - sem muita pompa.

Já escrevi aqui sobre a advertência feita pelo velho historiador Eric Hobsbawn, que considerava a "destruição do passado" como um dos fenômenos mais lúgubres do final do século XX. Dizia ele que sem a percepção dos fios que nos conectam às gerações passadas, que são os elos fundamentais para conferir sentido ao vínculo social entre as pessoas, somos condenados à deriva de um presente sem âncoras afetivas. Destruir os laços que nos ligam às gerações passadas significa construir um futuro sem afeto.

No poema “Especulações sobre a palavra homem” Carlos Drummond de Andrade indaga: “Como pode o homem sentir-se a si mesmo quando o mundo some?” Atualmente há uma enorme busca por sentido e propósito, talvez porque quando o mundo some, e com os avanços tecnológicos, o mundo some a cada instante, é o passado compartilhado e a possibilidade de não flutuarmos por aí sem raízes, aquilo que nos ajuda a produzir sentido, a nos sentirmos em parte herdeiros de um legado e em parte responsáveis pela sua renovação. Como lembra o sociólogo alemão Norbert Elias “O que chamamos de ‘sentido' é construído por pessoas em grupos mutuamente dependentes de uma forma ou de outra. O sentido é uma "categoria social” e não a busca romântica da pessoa em isolamento.

Há várias formas de isolamento no mundo atual, uma delas é o isolamento histórico: acreditar que o passado é relíquia e que ancestrais são peças de museu e não um rico manancial de troca, experiência e aprendizado. Há muito vôo de Ícaro nessa desconexão com a memória e a ancestralidade. Não seria mal que a família contemporânea siga no movimento dinâmico de adaptação necessária aos novos tempos, sem que isso signifique a perda da conexão com a riqueza da ancestralidade familiar.

* Psicólogo e Psicoterapeuta