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O Som do Silêncio: o valor do não dito

REUTERS/Aly Song -
Bandeiras dos EUA e da China
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Durante a discussão de um caso clínico num grupo de estudos coordenado pelo psicanalista Nahman Armony, falávamos sobre a importância da escuta do não dito, que ocorre durante uma análise. Foi então que Nahman (pronuncia-se Narman), depois de uma pausa, sugeriu: “Eu acho que faz um bem danado ao analista ouvir um pouco de música instrumental”, e acrescentou: “Ler poesia também… ajuda muito”. O grupo se interessou pela fala do nosso mestre e ele então explicou: “É que a música instrumental e a poesia afinam a escuta e a sensibilidade, que são instrumentos fundamentais do nosso trabalho como analistas”.

Macaque in the trees
** (Foto: Pixabay)

De fato, tanto a música instrumental quanto a poesia abrem um enorme campo para o simbólico: não são passíveis de um único significado limitante, não se restringem a "isso ou aquilo", ao contrário, quanto mais o amante da poesia ou da música instrumental treinam sua sensibilidade, mais camadas simbólicas se abrem; daí o acerto da sugestão de Nahman. Poesia e música instrumental são expressões artísticas que demandam um nível de atenção especial e uma ampliação da sensibilidade, necessárias para aguçar a escuta, para afinar o instrumento mais precioso do analista: sua própria personalidade.

Numa análise, o discurso do analisando, seus sonhos, seus conflitos e contradições, não se apresentam como uma equação matemática a ser resolvida objetivamente; ao contrário, quase sempre, assemelham-se mais a um conjunto de notas, que podem até soar um pouco desordenadas e imprecisas no começo, e que, portanto, demandam de uma escuta muito aguçada por parte do analista, sobretudo para a escuta do não dito, da falta, do silêncio, do que ainda é impronunciável e que por isso mesmo deve ser respeitado como valor de nota musical. O silêncio é povoado de significados.

Lembro de um jovem paciente, que, durante as primeiras sessões, sentava-se em silêncio e assim permanecia por muito tempo. Minhas tentativas de aproximação mostravam-se inúteis e as sessões permaneciam monossilábicas. Eu me perguntava se eu seria realmente capaz de ajudá-lo. A regra de ouro de uma análise junguiana é confiar nos caminhos do inconsciente e não ter medo de suas manifestações; foi o que fiz e segui com as sessões. Num dado momento, resolvi experimentar escutar atentamente o silêncio do meu paciente. Sem medo, sem pressa. O que aquele silêncio não podia dizer?

Nesse dia, eu e meu paciente permanecemos em silêncio durante quase todo o tempo da sessão. Me abstive de ser ativo. O silêncio deixou de ser uma fonte de angústia para se tornar um momento de gestação. Num dado momento ele sacou o celular e me perguntou se eu conhecia um determinado cantor. Fui honesto e disse que não, mas que adoraria conhecer. Ele então colocou a música para tocar. Era uma música em inglês, cuja letra me pareceu traduzir muito de seus graves conflitos indizíveis. Pudemos então, com cuidado, conversar sobre o que ele achava do tema da música, que acabou se revelando posteriormente ser o seu tema de análise.

Nas sessões subsequentes, ele me mostrava novas músicas e as músicas falavam por ele, falavam a respeito dos temas que ele não ousava falar. Do impronunciável. Essa maneira de conduzir a análise, respeitando os ritmos e valorizando os silêncios, durou; até que um dia eu, já acostumado com compasso das sessões, lhe perguntei que nova música ele teria para mostrar e ouvi com surpresa: “Hoje não, hoje eu quero falar”. A partir desse ponto, pudemos avançar em um novo estilo musical: o dele.

Nesse caso, foi preciso aprender a escutar o silêncio e respeitá-lo, depois a escutar por bastante tempo a voz “emprestada" aos muitos artistas que traduziam com grande sensibilidade o mundo interno do paciente, até que sua própria voz pudesse surgir e, com ela, suas expressões, suas palavras, suas imagens, seus símbolos, e, por fim, seus desejos, suas necessidades que começaram a ser postos em palavras e imagens. Enfim, sua personalidade começou a soar.

Como diz o poeta Octavio Paz (O Arco e a Lira): “A linguagem falada está mais perto da poesia que da prosa; é menos reflexiva e mais natural, e por isso mesmo é mais fácil ser poeta sem sabê-lo que prosador”. Foi Platão quem encontrou na etimologia de “fazer" a palavra poisen, que quer dizer habilidade, mas, também, está na origem de poesia.

No caminhar de uma análise, é possível que o par analista e paciente sejam “poetas sem sabê-lo”, porque há um fazer conjunto que, com habilidade, começa a abrir espaço para que a pessoa experimente novos estilos, para que ouça sua voz, para que possa encontrar o seu ritmo justo e singular, para que possa curtir as trilhas sonoras que escolherá para embalar sua vida.

Nas duas próximas semanas este colunista respeitando o valor da pausa estará de férias.

* psicólogo e psicoterapeuta Junguiano

Pixabay - **