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Katabasis - O inferno da separação

Karim Manjra (Unsplash) -
Katabasis
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Macaque in the trees
Katabasis (Foto: Karim Manjra (Unsplash))

Katabasis é a palavra grega que, na mitologia, refere-se à descida ao mundo subterrâneo, ao mundo dos mortos. Simbolicamente, podemos pensar em uma vivência dolorosa de descida aos subterrâneos da alma.

Na mitologia grega, existem episódios bastantes específicos nos quais um mortal acessa o mundo inferior, o Hades (nome do lugar onde as almas habitam e do Deus que preside esse mundo). Em todos esses episódios, há um elemento comum: uma crise, uma urgência psíquica inadiável. A crise atira a personagem num mergulho em suas entranhas, que, mitologicamente, é representado pela descida ao Hades, ao mundo dos mortos. Numa crise, é com os “mortos” ainda presentes em nossa vida que precisamos dialogar.

Esses “mortos presentes” são, não raro, feridas psíquicas não totalmente cicatrizadas, que abrem-se em momentos de crise, em momentos de ruptura, nos quais nos sentimos vulneráveis. A ruptura de um relacionamento é um dos mais comuns exemplos do que pode ser vivido como uma Katabasis radical.

Nesses momentos, nossos complexos são ativados, e tornam-se como que personalidades autônomas. Tomados pelos emaranhado de emoções e afetos como culpa, raiva, medo, angústia, perplexidade, desejo de vingança e desamparo, é mesmo difícil refletir, ponderar e dialogar racionalmente, pois os complexos não pensam, eles querem combater.

Os complexos são esses “mortos muito presentes” em nossa alma. Dizemos então: "não sei onde estou com a cabeça”, porque, de fato, numa crise, sentimos que uma outra personalidade, com grande poder, toma conta de nós, apodera-se de nossa cabeça, tronco e membros. É claro que nem todo término de casamento ou relacionamento é vivido como uma descida ao inferno, mas, em muitos casos, essa descrição se encaixa com precisão.

Na psicologia junguiana, o mito é de grande ajuda para desliteralizarmos as situações “empedradas" da vida. O mito nos permite um alcance psicológico mais rico, mais amplo e nos conecta com algo de ancestral e, portanto, arquetípico, ampliando nossa visão sobre nosso estado de alma e abrindo espaço para novos olhares. Penso que o mito de Orfeu oferece uma compreensão mitopoética das mais ricas a respeito da descida e das vias de saída dos subterrâneos da alma, diante da perda de um grande amor.

Orfeu era um jovem e talentoso músico que se apaixonou e casou com a bela Eurídice. A beleza de Eurídice havia despertado o interesse de outro homem, Aristeu, que, recusado, a persegue. Durante a fuga, Eurídice tropeça numa serpente (sempre ela) que a pica mortalmente. Morta Eurídice, sua alma percorre, então, o caminho inevitável de descida ao mundo subterrâneo, ao Hades. Inconformado, Orfeu empreende uma jornada que só alguns poucos se atreveriam: descer ao inferno para resgatar sua amada. Aqui, a morte de Eurídice pode ser entendida de maneira simbólica, como a ruptura de um relacionamento, e não exatamente como morte literal (embora, como todo símbolo, possua muitas camadas de significado; a morte literal sendo uma delas).

A recusa em admitir que um relacionamento chegou ao fim, que algo morreu simbolicamente, atira o cônjuge inconformado a uma descida avassaladora aos subterrâneos da alma. Nesses casos, a depressão é uma expressão frequente dessa descida. A negação é uma das formas pelas quais a pessoa desce e anda em círculos, sem a capacidade de conferir sentido a sua nova etapa de vida. Voltemos a Orfeu.

Com sua música encantadora, Orfeu convence o barqueiro Caronte, responsável pela travessia das almas, a conduzi-lo pelo mundo inferior e, assim, consegue a façanha de entrar, ainda vivo, no mundo das almas. Com sua lira, ele faz Cérbero, a fera de três cabeças que protege a entrada do Hades, adormecer e penetra, ainda mais profundamente, no mundo subterrâneo em busca de sua amada.

Os amantes inconformados, assim como Orfeu, encontram milhares de estratagemas para tentar “enganar" a morte de seus relacionamentos e seguir numa busca que retira a energia necessária para a reconstrução da sua vida, da sua nova história, de outra narrativa possível.

É chegada a hora do encontro com o soberano do mundo dos mortos, o Hades em pessoa. Ele fica furioso com a presença de um mortal ainda vivo em seu reino, mas, usando uma vez mais a persuasão de sua música, Orfeu convence Perséfone, a esposa de Hades, a conceder que ele resgate sua amada Eurídice. Hades concorda, no entanto, impõe uma condição: Orfeu poderá levar Eurídice, contanto que, ao longo da subida, jamais olhe para trás. Caso descumpra a ordem, Eurídice retornará para sempre ao mundo dos mortos.

Orfeu empreende a subida íngreme de volta à terra. Vai andando e tocando sua lira; a música serve como guia para sua amada, que o segue no mesmo compasso. Bem próximo à saída, quando já é possível avistar a luz do sol, Orfeu não resiste e olha para trás para verificar se sua amada ainda o acompanha, e, ao fazê-lo, Eurídice torna-se imediatamente um fantasma e retorna ao Hades para todo o sempre, para o desespero de Orfeu.

Há algo de muito simbólico nesse olhar para trás. Hades não se deixa enganar facilmente, ele sempre reclama suas posses: aquilo que já morreu. Há que se fazer uma escolha; para sair do inferno, para superar a crise de uma ruptura vivenciada como traumática, é incontornável dialogar com nossos fantasmas, com os mortos vivos internos que nos assombram e nos fazem olhar fixamente para trás. Esse enfrentamento incontornável libera a energia psíquica necessária que a pessoa precisa para, olhando para frente, iniciar a subida e deixar morrer o que é preciso; e, assim, permitir que uma nova vida possa germinar, que novas possibilidades possam surgir.

Na vida fazemos várias Katabasis, mas, ao retornarmos, voltamos transformados. Somos novos “eus”. Há uma nova personalidade, mais profunda, após a experiência da superação e do retorno ao mundo dos vivos, ao mundo o qual temos todo o direito de pertencer. Após esse mergulho profundo, é possível deixar para trás o que é de Hades , abrir espaço para que a música da vida possa voltar a soar enfim seguir em frente.

* psicólogo e psicoterapeuta