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Quando o "SE" sufoca o "SER"

Ney Megale -
Quando o "SE" sufoca o "SER"
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Éramos meninos e meninas, alunos do primeiro período da faculdade de História, no final da década de 80. Todos ávidos por saber mais, por debater ou por simplesmente estar ali naquele ambiente estimulante. Cada novo professor era aguardado com um misto de suspense e inquietação. O que iria nos apresentar? Que novas ideias? Que novos enfoques? Que novas leituras? Que novas aventuras intelectuais?

Macaque in the trees
Quando o SE sufoca o SER (Foto: Ney Megale)
Então ele entra, tem um porte imponente, uma pasta de couro surrada, como que saída de alguma velha escritura, só rivalizando em antiguidade, com os óculos de aros muito grossos, dependurados sobre a ponta do nariz, de onde surgiam dois grandes olhos de coruja, que nos observaram em um longo silêncio, que, de tão constrangedor, foi se tornando incômodo.

Então sua voz, como uma trovoada, rompeu o silêncio e ocupou cada cantinho da sala: “Como seria o Brasil de hoje se os holandeses tivessem vencido os portugueses?” Segue-se um silêncio de cemitério, até que uma voz meio trêmula oferece uma resposta em tom hesitante de pergunta: “Seríamos um país mais desenvolvido?”. Alguém discorda veementemente e lembra do destino cruel da África do Sul e do Apartheid. Uma voz mais confiante vinda no fundo da sala grita alguma frase desconexa, e logo uma moça elegante, com cara de intelectual, demonstra, com finíssimos argumentos lógicos, que nada mudaria, afinal, seríamos uma mera colônia, e colonizador é colonizador. A sala se transforma num palco feérico de concordâncias e discordâncias aguerridas. Impassível, o mestre apenas nos observa.

Passado um tempo, ele interrompe a discussão com outra pergunta, que agora soa tão paradoxal quanto um koan zen: "O que seria do mundo se os nazistas tivessem vencido a guerra?" Dessa vez, rompidas as amarras da vergonha inicial, a discussão se torna ainda mais solta. Cenários geopolíticos complexíssimos são construídos: da escravização em massa, ao apocalipse da humanidade. Nova pergunta: “E se Palmares não tivesse sido derrotado?” E mais outra: “E se o Paraguai tivesse vencido?”; “E se D. João VI tivesse abdicado ao trono de Portugal e ficado por aqui?”. Um frenesi crescente tomava conta de nós, até que um vigoroso tapa na mesa instaurou, de maneira súbita, o silêncio.

O mestre então levanta-se com um ar enfadado, apanha um giz e escreve algo com muita força, quase agredindo o quadro negro: um enorme “S” surge em meio às suas mãos empoeiradas. Ele para, dá um longo suspiro, contempla o "S" e logo retoma o transe, até que um garrancho em forma de “E” surge ao lado do “S”. Ele para mais uma vez, como um pintor que admira sua obra, e, então, conseguimos vislumbrar, tentando desviar de seu corpanzil, os enormes garranchos que constroem a palavra “SE”. Mais um período de silêncio, e ele investe novamente contra o quadro: agora está atacando com a fúria de um Pollock o “SE” que acabara de escrever. Ele risca a sua obra com agressividade. O “SE” agora quase desaparece: está todo rasurado.

Estamos todos atônitos, nada parece fazer muito sentido. O mestre vira-se em nossa direção, e seus grandes olhos de míope nos contemplam. Mais uma vez, a sua voz maciça preenche toda a sala, agora com mais força; ele grita: “Em História, ‘SE’ não existe!”. Faz uma breve pausa e acrescenta: “Não existe, porque não é útil.” Nunca mais ousei especular com a História e percebi, desde então, o perigo, às vezes inevitável, de especular excessivamente com os acontecimentos da vida.

Embora, segundo meu antigo mestre, o "SE" não exista em História, é justamente nos momentos mais confusos, instáveis e ameaçadores da vida, que o "SE" instaura-se sorrateiramente e assenhora-se de nossos pensamentos. Acontece, então, que a energia psíquica tão necessária para lidar com temas difíceis do presente é sequestrada, exatamente quando mais precisamos dela: no aqui e agora. O mecanismo de funcionamento do “Grande SE” é pendular: ora o “SE” nos fixa em conflitos passados, ora ele nos atira em especulações futuras, contras as quais não temos nenhuma possibilidade de controle. Nesse sentido o “SE" é um dos grandes agentes da ansiedade. Parafraseando o poeta Leminski: o “SE" tem família grande e se espalha nos momentos de crise.

Encontrei uma das definições mais precisas de ansiedade em Fritz Perls, o criador da Gestalterapia. Para Perls, a ansiedade é estado em que o corpo está em um lugar, enquanto a mente está divagando em outro, vislumbrando derrotas catastróficas em batalhas futuras, ou, ao contrário, pelejando, como um Quixote, contra os moinhos de vento do passado. O “E SE?” é frequentemente um grande indutor de culpa, é o representante máximo da hesitação e da paralisia.

"E se" eu tivesse abandonado o curso de química e apostado no sonho de ser paraquedista? "E se" eu tivesse casado com “fulana”? "E se" eu tivesse aguentado um pouco mais e não me separado de “beltrano?” "E se" eu tivesse tido coragem? "E se" eu tivesse sido mais cauteloso? "E se" eu tivesse tido filhos? "E se” eu tivesse me esforçado mais? "E se" eu não conseguir superar essa barra? "E se" a economia piorar? "E se" eu não passar no concurso? "E se" ela enjoar de mim? "E se” ele não for a pessoa certa?

Em todos esses casos, o “se" nos afasta da vivência do que é preciso no momento, daquilo que é incontornável, de nossa principal tarefa nesse precioso tempo, nessa justa hora dos conflitos que precisamos enfrentar. O “SE" nos tiraniza, nos desvia perigosamente para um lugar distante de onde precisamos estar.

O “SE" é frequentemente injusto, porque exige de nós uma maturidade, uma presença, uma percepção das coisas que não era possível naquele tempo passado. Às vezes, é ainda mais cruel, ao exigir de nós uma quase onipotência e onisciência, como se fossemos deuses. Nesses casos, o “SE” sufoca o “SER”, que é impedido de viver no presente.

O “SE" é particularmente cruel conosco quando se transforma numa dízima periódica mental, nos levando ao infinito de possibilidades negativas de futuro, não admitindo uma, uma sequer, possibilidade de um desfecho distinto e satisfatório.

Devo concordar com meu antigo mestre, que, pelo menos nas ocasiões mais críticas da vida, o “SE” é muito pouco útil; mas, diferente daquele “SE" escrito a giz numa lousa universitária na década de 80, o “SE" psíquico é feito de matéria distinta e bem mais resistente. É preciso que a pessoa aprisionada pelo “SE" receba apoio e escuta, e que ela própria, através da elaboração de suas fantasias de onisciência e onipotência, vá, aos poucos, rasurando os “SEs" que a tiranizam, e, assim, vá abrindo mais espaço para o SER, que precisa e merece respirar no presente.

Os grandes mestres deixam marcas. Sou grato a todos os mestres do passado e do presente que me ajudam não só a enxergar os “SEs" que ainda me atormentam, como também a ajudar meus pacientes a enxergarem e lidarem com os seus próprios “SEs".

* Psicólogo e Psicoterapeuta