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O amor nos tempos do algoritmo

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Sou fã confesso de Black Mirror. Um dos episódios mais comentados da série é “The entire story of you” (Toda a sua história), que narra um caso de infidelidade entre o casal Liam e sua esposa Ffion. É claro que a trama envolve tecnologia. Atenção: a partir daqui, o leitor, que ainda não viu a série e não quer receber um super spoiler, pode abandonar a leitura e voltar depois de assistir o episódio, que é imperdível.

Macaque in the trees
A idade madura" - Camile Claudel (Foto: Reprodução)

A ideia é mais ou menos a seguinte: no futuro, todos instalariam, atrás das orelhas, um dispositivo do tamanho de um grão de feijão, que permitiria gravar tudo o que vemos e ouvimos. É como instalar uma espécie de HD externo que arquivaria todas as suas experiências. Com suas memórias arquivadas, você poderia revisitar, quantas vezes quisesse, os melhores momentos do dia ou os piores traumas da existência.

Quando o dispositivo de memória é ativado , os olhos reviram e ficam brancos, como se a pessoa se transformasse em zumbi. Quem assistiu ao episódio, considera essa imagem a mais apavorante. Creio que o episódio apavore mesmo, mas por outros motivos. Primeiro, porque se trata de um tema muito próximo: o jovem Liam, desempregado, e, portanto, fragilizado, revira seus arquivos de memória em busca da prova de foi fora traído. Em sua pesquisa, ele obriga a esposa a abrir seus arquivos de memória, até comprovar que ela o traiu com Jonas, um ex-namorado, que no final acaba se mostrando não ser tão “ex” assim. No final, Liam obriga Jonas a apagar suas memórias do dispositivo, como se as memórias internas de alguém não valessem mais nada no futuro.

Essa é uma história universal, explorada pela mitologia, literatura, cinema, teatro e novelas e, agora, até pelas séries futuristas. Se é contada e recontada por tanto tempo e tantas vezes, é porque faz parte de uma das maiores assombrações de todos os tempos: a traição.

A traição é um tema arquetípico muito forte e isso tem um porquê.

A infidelidade representa uma ruptura com nossomundo presumido. O mundo presumido condensa a necessidade humana universal de estabilidade afetiva. Num episódio de infidelidade, nossos desejos de estabilidade, pertencimento e confiança, são subitamente rompidos. A vida que imaginamos, o lar que imaginamos, a relação que imaginamos, a narrativa organizada de que dispúnhamos para dar sentido a nossa vida, tudo isso é posto em cheque. O mundo presumido se partiu, nos vemos diante da dolorosa tarefa de construirmos um outro mundo, uma outra narrativa, mesmo que seja com a mesma pessoa.

Num episódio de infidelidade há ruptura da confiança básica. A confiança básica é umavivênciacujo primeiro registrodata da infância, quando nós, ainda bebês, totalmente indefesos, experimentamos possibilidade de entrega total e cuidado. Espera-se que nossos primeiros cuidadores, geralmente uma mãe ou um pai atenciosos, não falhem exageradamente; esperamos que eles não nos traiam. De uma certa forma, nas relações de casal, buscamos, ao menos em parte, a recuperação dessa experiênciaprimária de cuidado, de entrega e confiança.

A infidelidade, aorompercom essa expectativa universal, abre as comportas para a inundação de afetos selvagens: inferioridade, inadequação, humilhação, desamparo. A ruptura do mundo presumido é uma variante do luto. Mesmo que o casal supere o episódio, algo morre: a imagem idealizada do parceiro, do relacionamento, e de nós mesmos. É preciso um trabalho de luto - que leva tempo - para que a energia retirada pela dor da perda, possa, aos poucos, ser reinvestida na reconstrução do mundo abalado, de um outro mundo possível, em novas bases, um novo eu.

Aquele que trai também é enredado por uma espiral de emoções desordenadas: culpa, inadequação, incompreensão, raiva. Aqui também uma série de complexos emerge e toma de assalto a personalidade. Não é à toa que são raras as possibilidades de um diálogo bem sucedido entre casais no auge de tais situações, pois ambos estão "possuídos" pelo inconsciente. Complexos afetivos não dialogam, combatem-se. É preciso tempo e disponibilidade afetiva para que surja o espaço para um diálogo franco e honesto, o que está longe de ser impossível, mas não é fácil.

O segundo motivo para que o episódio seja tão apavorante deriva do primeiro argumento: não é difícil nos reconhecermos em um ou até mesmo em múltiplos personagens da trama: o traído, o traidor, o amante. É algo que nos apavora, pois gostaríamos de nos considerar muito distantes disso tudo. O que é novo nessa narrativa é que, ao invés do trio clássico traído-traidor-amante, “Black Mirror nos apresenta um quarteto: traído-traidor-amante e um novo personagem: a tecnologia.

A tecnologia, como Black Mirror facilmente nos induz a concluir, figura como a nova serpente: é ela que nos instigaria à desmedida, a cruzar a linha, a provar o fruto proibido. Corremos o risco de sermos banidos do paraíso sempre que sucumbirmos à tentação de mergulhar nas profundezas do espelho negro (as telas de computadores, tablets e celulares), na intimidade e nos segredos mais bem guardados de nosso companheiro ou companheira.

É possível argumentar que aquilo que a tecnologia torna possível só se transforma em provável quando escolhemos (nem sempre de maneira consciente) agir desta ou daquela maneira. Black Mirror, portanto, não é uma série sobre tecnologia, é uma série sobre ética, que o tempo todo nos coloca a seguinte questão: e se você tivesse essa possibilidade em suas mãos, o que você faria?

A busca de “toda a verdade” sobre o outro é uma busca vã, pois o outro será sempre o enigma. Conviver com o enigma é um desafio, pois a nossa cultura atual nos promete o tempo todo revelar toda a verdade sobre o outro e sobre nós mesmos: a verdade biológica pelo genoma, a verdade do cérebro, pela neurociência, a verdade do corpo, por meio de exames cada vez mais precisos, a verdade dos nossos desejos, pelos algoritmos que coletam incessantemente nossos dados e analisam nosso comportamento. A tecnologia é o utensílio do controle.

A poesia por sua vez é “inutensílio” da alma: surge sempre para nos salvar. Recorro ao poema “As Sem Razões do Amor”, de Carlos Drumond de Andrade: ”O amor é estado de graça e com amor não se paga." O controle mata o amor a cada vez que o “estado de graça” é convertido em moeda, a cada vez que o contador em nós apresenta o balanço dos haveres e deveres da relação e espera retorno sobre o investimento.

O melhor a fazer é reavaliar se o mundo presumido que se vai é mesmo tão maravilhoso assim, ou se tornou apenas hábito. O hábito é inimigo mortal da intensidade e do prazer. A criatividade é nossa aliada na tarefa de nos desabituarmos e ampliarmos as formas de curtir gostosamente a vida a dois. Há muitos mundos por construir. Muitos novos “eus" aguardando a chance de serem habitados. A sensibilidade que sobra ao poeta, falta ao contador em nós: ele custa a entender que com amor não se paga: amor se vive, se quebra, se renova, se re-pactua, ou não.

* Psicólogo e Psicoterapeuta