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A mão possessa do feitor

Mystic Arts Design (Unsplash) -
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Que as pessoas têm complexos e que os complexos são dolorosas fontes de transtornos psíquicos, é uma descoberta feita pela psicologia junguiana desde seus primórdios. Mas e se, além dos indivíduos, as sociedades também possuíssem complexos, ou melhor: e se as sociedades fossem possuídas pelos complexos que não tiveram condição de elaborar ou coragem de enfrentar?

Macaque in the trees
*** (Foto: Mystic Arts Design (Unsplash))

Os analistas junguianos Thomas Singer e Samuel Kimbles desenvolveram o conceito de "complexo cultural" para abranger os complexos que atingem as camadas mais profundas da psique, explicando a dinâmica pela qual determinados temas traumáticos na história dos povos, são excluídos da consciência coletiva, não confrontados, e por isso mesmo acabam agindo de modo muito semelhante aos complexos individuais: provocando sintomas, repetições nocivas, muita dor e sofrimento, encontrando sempre um “outro" sobre quem projetar um lado obscuro da personalidade que não se é capaz de encarar em si mesmo. Assim como os complexos individuais, os complexos culturais são resultado de feridas não tratadas, que permanecem em carne viva.

Na sociedade brasileira, o complexo cultural da escravidão, base do racismo estrutural que vigora em nossa cultura, é uma ferida aberta que não para de sangrar. Na semana passada, sangraram as costas de um jovem negro de 17 anos, que foi chicoteado por seguranças de um supermercado pela suspeita do furto de um chocolate. Esse está longe de ser um caso isolado. Como todo sintoma de adoecimento psíquico não tratado, o complexo insiste em se repetir de diferentes maneiras.

Estranho instrumento esse, o chicote: de tempos em tempos ele reaparece. Em 2009 seguranças da Supervia (companhia de trens urbanos do Rio de Janeiro) foram flagrados dando chicotadas nos passageiros, para que destravassem as portas dos trens lotados. É muito simbólico que esse instrumento, que por séculos torturou, pela mão do feitor, os escravos, ressurja, em pleno século XXI, na mão de “seguranças”. Uma das lições que aprendemos a respeito dos complexos culturais é que eles têm raízes profundas no inconsciente das sociedades, por isso, para identificá-los, é importante recuar na História.

No século XIX uma das figuras destacadas do Império foi o major Miguel Nunes Vidigal. Vidigal foi um dos mais temidos membros da Guarda Real, e inspirou o personagem do romance "Memórias de um Sargento de Milícias". O historiador Thomas Holloway (Polícia no Rio de Janeiro, Editora FGV) conta que “Em vez de sabre de militar comum, o equipamento normal de Vidigal e seus granadeiros era um chicote de haste longa e pesada, com tiras de couro cru em uma das extremidades, o qual podia ser usado como cacete ou chibata”, um símbolo arcaico e colonial de tortura e punição, deixando claro qual o alvo preferencial da Guarda Real: a população negra e escrava, a única passível de ser alvejada pela chibata.

Dentre as principais atividades da Guarda Real estava a missão de comandar assaltos aos quilombos e acampamentos de escravos fugidios, e Vidigal estava frequentemente à frente dessas "operações policiais”, que com o tempo foram se tornando cada vez mais eficientes, ao ponto da sociedade carioca ter-se dado ao luxo de prescindir do serviço dos capitães do mato, caçadores privados de escravos, que foram extintos legalmente em 1820. A polícia imperial havia se tornado uma versão aperfeiçoada dos capitães do mato.

Esse acontecimento histórico é carregado de profundo significado, pois o capitão do mato é um arquétipo poderoso, simboliza um aspecto sádico da sombra coletiva da sociedade brasileira. O analista junguiano Walter Boechat, recorda em seu artigo “Luzes e Sombras da Alma Brasileira” um pensamento marcante de Darcy Ribeiro "Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados. Todos nós, brasileiros, somos, por igual, a mão possessa que os supliciou."

Podemos ver a ação do arquétipo do capitão do mato nas “mãos possessas” dos guardas da Supervia chicoteando a população a quem deveriam servir, nos braços do segurança que estrangulou um jovem negro de 19 anos em um supermercado, nas costas chicoteadas do jovem que supostamente furtou um chocolate, ou até mesmo na conduta de um personagem ficcional de grande sucesso no cinema nacional recente: o Capitão Nascimento do filme Tropa de Elite.

Num complexo cultural, a projeção da sombra coletiva sobre um segmento específico da população, equivale a tomá-la como inimigo a ser vigiado, perseguido, castigado, combatido, morto. Do Major Vidigal ao Capitão Nascimento, o arquétipo do capitão do mato mantém-se vivo e ativo no inconsciente cultural brasileiro. Embora a chibata tenha sido atualizada pelo fuzil, o “inimigo" continua o mesmo: a população pobre, e sobretudo, a parcela jovem e negra desta população.

Jung costumava dizer que não temos complexos, eles é que nos têm, e que um complexo só se torna patológico quando achamos que estamos livres de sua influência. Jung refere-se, é claro, à esfera individual, mas como se pode ver, essa afirmação vale também para a dimensão coletiva.

Sem que a sociedade brasileira mergulhe em um profundo processo de elaboração dos seus complexos culturais, que excluem e violentam sua própria gente; sem que se assuma que ainda somos regidos por um trauma histórico não cicatrizado - a escravidão - que alimenta um desequilíbrio arcaico e patológico e atira cada vez mais pessoas para o abismo, continuaremos acreditando que a nossa realidade é destino inevitável e seguiremos possuídos pelo inconsciente, lavando as mãos diariamente diante da barbárie.

* psicólogo e psicoterapeuta