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Reflexões sobre o dia dos solteiros

Hoje, 15 de agosto, a data é comemorada no Brasil

Robert-Owen-Wahl (Pixabay) -
Dia do Solteiro
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Até onde sei, o dia dos solteiros é uma invenção chinesa que nasceu espontaneamente de um evento estudantil na universidade de Nanquim. A data escolhida por lá é rica em simbolismo: 11/11. Os quatro “1” celebram o orgulho do indivíduo solteiro. Curiosamente, nesse dia os chineses também organizam encontros às cegas para que os solteiros não tão convictos, assim possam tentar a sorte e mudar de status. Por lá a data foi apropriada pelo comércio e, apenas no ano passado, o Alibaba, gigante do e-commerce chinês, realizou $ 30 Bilhões em vendas.

Macaque in the trees
Dia do Solteiro (Foto: Robert-Owen-Wahl (Pixabay))

Se uma data comercial “pega" é porque toca em algum aspecto da cultura: é porque diz algo sobre nós. No Brasil, a data ainda não “pegou”, mas ano a ano, surgem aqui e acolá matérias jornalísticas cobrindo o tema, marcas de cerveja e fast-food fazendo anúncios, shopping centers oferecendo promoções e pessoas dispostas a celebrar o “orgulho single”. Tenho uma certa simpatia pela data. Me explico. Por muito tempo estar solteiro foi considerado em nossa cultura um estado “provisório”. Algo incompleto, que, se tudo desse certo, rumaria à meta final: "ser" casado. Acontece que no mundo pós-molduras é cada vez mais incomum “ser" alguma coisa e cada vez mais frequente “estar" alguma coisa: crescem os modos mais mais fluídos de viver.

As estatísticas apenas comprovam o que nossas relações cotidianas evidenciam: o número de divórcios aumenta em relação às séries históricas, os casamentos duram cada vez menos e o número de solteiros só faz crescer. Ou seja, “estar” solteiro não é mais um estado provisório, precário e incompleto; mas apenas mais um dos muitos modos de estar no mundo. Por que não celebrá-lo?

Dentre as causas possíveis para o aumento do número de solteiros no mundo, há pelo menos quatro grandes explicações: a primeira é o declínio acentuado do modelo de família patriarcal que estruturou as relações familiares durante séculos; o segundo é uma das causas do primeiro: a entrada maciça das mulheres no mercado de trabalho que tem como consequência maior liberdade de escolha e autonomia para que as mulheres possam decidir seu destino; o terceiro é o Zeitgeist, o espírito do tempo do mundo pós-molduras: estamos vivendo cada vez mais no modo “estar" do que no modo “ser”. Relações estáveis sempre exigem algum grau de renúncia e nos dias atuais, menos pessoas parecem estar dispostas a renunciar a uma gratificação imediata em nome de estabilidade afetiva a longo prazo. Vive-se enfaticamente pelo princípio do prazer. O quarto é a tecnologia, que amplifica incalculavelmente as possibilidades de gratificações imediatas e relações sexuais sem envolvimento afetivo num ritmo frenético. É claro que isso traz consequências, muitas delas negativas, para a auto-estima e para a maneira como encaramos o outro e a nós mesmos: cada vez menos como pessoas complexas e cada vez mais como objetos.

Há, como quase tudo na vida, muitos aspectos no “estar” solteiro no mundo contemporâneo: existem pessoas que navegam com fluidez na solteirice, que desfrutam de envolvimentos afetivos íntimos, sem necessariamente buscar um status fixo em suas relações, e vão muito bem obrigado; há os solteiros e solteiras que na ausência de uma relação afetiva íntima, obtém afeto e amor em relações de amizade, em relações familiares e no trabalho, que mantém uma vida rica em atividades, mas deixam bem claro que preferem estar sozinhas do que "mal" acompanhadas. Há no entanto entre os solteiros um grupo não desprezível de pessoas que prefeririam compartilhar a vida com uma companhia afetiva estável, que por inúmeros motivos lhes falta. Nesse caso estar solteiro é vivido como uma penosa experiência de solidão.

As relações de intimidade são a nossa principal fonte de vínculo afetivo e suporte emocional, isso é inegável; mas o problema reside no fato de que estabilidade e prazer raramente frequentam os mesmos lugares. Isso tem relação direta com o crescente número de divórcios. É preciso que os casais injetem energia em suas relações para que o custo da estabilidade não esmague o prazer. É saudável que os casais preservem seus momentos “solteiros” e possam sair com seus grupos de amigos e amigas, cultivar seus interesses pessoais e sobretudo evitar a simbiose. É preciso oferecer espaço para o indivíduo possa existir dentro do casal e não seja aniquilado pela relação. É sempre bom lembrar que numa relação a dois existem dois indivíduos e não uma “coisa só”.

Uma companhia se torna mais significativa e prazeirosa se ela for uma escolha e não um hábito, seja você solteiro ou casado. Dito isso, se você for solteiro, feliz dia do solteiro! Se você for casado, não deixe de celebrar o "solteiro" que existe em cada casal, é ele que tem o potencial de tornar a relação mais viva e impedir que a estabilidade se transforme em monotonia.

Flávio Cordeiro é psicólogo e psicoterapeuta