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Pobre Cérebro - A Neurociência da Fome

Rapheal Nathaniel (Pixabay) -
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Desde meados do século passado, uma série de estudos da psicologia do desenvolvimento e educação, vêm demonstrando a influência da pobreza no desenvolvimento social, emocional e cognitivo de crianças e adultos. No entanto, só muito recentemente a neurociência entrou em campo para ampliar o entendimento de como a pobreza e a desnutrição afetam de modo dramático o cérebro e consequentemente o futuro de gerações. Graças a essas novas linhas de pesquisa, sabe-se hoje que o cérebro é especialmente sensível ao estresse crônico, aos maus tratos, aos déficits alimentares e afetivos que a pobreza acarreta ou intensifica. 

De acordo com dados do IBGE, há cerca 15 milhões de pessoas em estado de extrema pobreza no Brasil. Segundo a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), dentre aqueles em estado de extrema pobreza, pode-se chegar a um número entorno de cinco milhões de pessoas desnutridas. Ainda que o país venha fazendo progressos no combate à fome e o percentual de desnutridos tenha caído de 4,6% da população entre 2004-2006 para menos de 2,5% entre 2006-2018, o fato é que a realidade concreta vai muito além de variações percentuais: de acordo com o DataSus,15 pessoas morreram por dia de desnutrição em 2017. A fome é, e continua sendo no Brasil, a face mais sombria da pobreza e um fantasma que não deixa de nos assombrar.

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(Foto: Rapheal Nathaniel (Pixabay))

O primeiro estudo em que se utilizou uma técnica de neuroimagem para analizar a associação entre pobreza, estrutura e função cerebral foi realizado em 2015 por Kimberly Noble, desde então, a neurociência tem trazido novas perspectivas e evidências de que a pobreza e a desnutrição afetam a morfologia cerebral e o desenvolvimento dos sistemas de atenção, memória de trabalho, flexibilidade cognitiva, linguagem e sistema regulatório, este último se refere a capacidade de ajustar, em função do contexto, os pensamentos, emoções e condutas, ou seja, algo fundamental para funcionarmos plenamente na vida. O que a neurociência vem aportando, são evidências de que a pobreza influencia de forma decisiva na formação de um “pobre cérebro”. 

Pobre Cérebro é o título do livro do neurocientista argentino Sebastián Lipina, pesquisador, conferencista e consultor da Unicef, PNUD, OPS e Childwatch. Em seu livro, Lipina faz um longo inventário dos principais estudos relacionados aos “custos cerebrais da pobreza”. Estes estudos demonstram de forma reiterada que os baixos níveis de renda das famílias estão associadas a um pior desempenho no controle cognitivo.

A associação entre déficit nutricional e pobreza, se reflete em problemas de crescimento físico e desempenho acadêmico, interferindo nos processos iniciais da organização cerebral como a síntese de neurotransmissores, a formação dos neurônios no metabolismo energético das células neurais, impactando a velocidade do processamento de informações, o controle emocional e as competências da memória e aprendizagem. 

A boa notícia é que a neurociência vem demonstrando que, embora os primeiros 1.000 dias de vida sejam críticos para a formação neuronal, as chamadas “janelas de oportunidade” se estendem até os 7.000 dias de vida. Ou seja, intervenções realizadas ao longo desse período podem minimizar impactos, que de outra forma seriam duradouros na vida dos indivíduos. A plasticidade neuronal, ou seja, a capacidade de reorganização e transformação do sistema nervoso em decorrência de sua interação com o ambiente, é a grande aliada no trabalho de recuperação dos danos causados pela exposição à fome e à pobreza, especialmente nos primeiros 7.000 dias de vida, incluindo o período de gestação.

Em temos junguianos, a fome pode ser considerada um aspecto de nossa sombra coletiva. A sombra coletiva é tudo aquilo que não aceitamos, que consideramos incompatível com nosso ideal de sociedade e, portanto, tendemos a negar ou minimizar. A sombra coletiva é povoada por complexos. Complexos são emaranhados de emoções confusamente associadas, geralmente decorrentes de experiências dolorosas. Assim como os indivíduos possuem complexos, as sociedades também os possuem: são os chamados complexos culturais. 

Acontecimentos traumáticos como guerras, perseguições a minorias étnicas ou políticas, conflitos civis, escravidão, grandes desníveis sociais, catástrofes naturais ou civilizacionais são potenciais criadores de complexos culturais: têm em comum o fato de serem experiências conflituosas, carregadas de emoção, que uma sociedade tem muita dificuldade de digerir e assimilar. Todo complexo se traduz, portanto, num conflito que escapa à consciência e que por isso, teimosamente nos faz tropeçar muitas vezes numa mesma questão. 

O conceito de complexo cultural foi cunhado pelos psicólogos junguianos Thomas Singer e Samuel Kimbles. e procura explicar as formas pelas quais alguns temas são excluídos da consciência coletiva, negados ou minimizados. Complexos culturais quando ativados tendem a oferecer certezas simplistas para problemas complexos, nublando as ambiguidades e dificultando a mobilização de energia para sua superação; por isso mesmo contribuem para que as sociedades tropecem repetidamente em questões, que embora sejam exaustivamente conhecidas, tendem a se perpetuar. Encarar o que é desagradável é a única maneira de despotencializar complexos culturais e amadurecer como sociedade. 

Alguns neurocientistas têm defendido a ideia de que as neuroimagens são muito poderosas para sensibilizar as autoridades sobre o efeito deletério que a pobreza e a insuficiência alimentar desempenham na formação neuronal e consequentemente nas perspectivas de futuro de milhões de pessoas. Roga-se que o poder dessas imagens seja capaz ampliar a consciência social e impulsionar a erradicação desse flagelo que é a fome, num país que é um dos maiores exportadores de alimentos do mundo.

Flávio Cordeiro é Psicólogo e Psicoterapeuta

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