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As muitas faces do FaceApp

Claudia Penteado -
O autor 'inocentemente' ajudou a calibrar o algoritmo de reconhecimento facial do FaceApp
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Nesta semana, um aplicativo que envelhece o rosto pessoas viralizou nas redes sociais. Milhares de faces enrugadas, cabelos embranquecidos e calvícies emolduraram as timelines de todo o mundo. Mas por que um app que envelhece seu rosto acaba se tornando um sucesso instantâneo?

Uma hipótese: a incerteza e a ambiguidade raramente foram bem-vindas na história da humanidade.

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O autor 'inocentemente' ajudou a calibrar o algoritmo de reconhecimento facial do FaceApp (Foto: Claudia Penteado)

Desde que o mundo é mundo somos atraídos por vislumbrar o futuro. Perscrutamos os céus em busca de mapas que nos ofereçam coordenadas e antecipem nosso destino, consultamos oráculos em busca de respostas para nossas angústias e de estratégias para nossos dilemas. Diante dessa pulsão quase incontrolável, cada cultura precisou desenvolver seus mecanismos de antecipação do devir: I Ching na China, Delfos na Grécia antiga, as cartas do Tarot na idade média, as Runas germânicas, os Búzios africanos, etc. Essa necessidade arquetípica de vislumbrar o futuro talvez explique o quão irresistível é aderir a “brincadeira” do FaceApp.

Coloco "brincadeira" entre aspas porque os entendidos em tecnologia desconfiam tratar-se de uma maneira inteligente e sinistra, de treinar um algoritmo de reconhecimento facial e assim, coletar dados de milhares de pessoas. Como sabemos, na nova economia, os dados são o novo petróleo: vazam. E como o petróleo despejado nos mares, dados mal utilizados, causam muitos estragos. As pessoas entram inocentemente na “brincadeira” e podem acabar fornecendo munição para um nível de controle inimaginável. Ficção científica? Talvez, mas na era de Black Mirror todo cuidado é pouco. Mas não é isso que interessa aqui. Interessa entender quais os impactos psicológicos desse contato meio ao acaso com o envelhecer.

Fiz uma rápida enquete com pessoas amigas que “envelheceram" nesta semana. Quais emoções teriam brotado dessa experiência aparentemente tão despretensiosa?

Quando postam suas faces envelhecidas nas redes sociais, o tom é quase sempre bem-humorado e galhofeiro, mas no escurinho do “inbox" a coisa muda um pouco de figura. Nessas rápidas interações, foi possível escapar por um minuto do tempo verbal preferido nas redes sociais: o “presente-mais-que-perfeito” e abrir espaço para um contato mais profundo com a imagem do envelhecer. Pude colher muitos relatos e entabular algumas conversas bastante significativas.

Há, na maioria dos relatos, um confronto com a sombra da velhice, o receio do desamparo e um primeiro contato inquietante com a recalcada, embora inexorável, marcha do envelhecer. Algumas pessoas hesitaram, mas não tiveram coragem de fazer o “teste”, sentiram-se extremamente desconfortáveis diante da mais remota possibilidade de encarar as manchas de pele e o rosto enrugado. Não suportaram nem sequer as imagens de amigos e parentes envelhecidos, que ao final consideraram “grotescas”. Para elas, o envelhecer é sentido algo aflitivo, uma experiência da qual preferem manter uma certa distância regulamentar.

Outros entraram na brincadeira, mas ao depararem-se com o resultado, não tiveram coragem de postar sua foto envelhecida, contam que sentiram um certo mal estar ao entrarem em contato com a finitude e, diante dela, curiosamente, optaram por um retorno à infância e na direção contrária do “teste”, acabaram postando sua foto rejuvenescida. Este foi o mesmo comportamento de alguns que simplesmente não se reconheceram na imagem da velhice. Um de meus interlocutores afirmou “Não era eu, não poderia ser eu em nenhuma hipótese”, diante desse "não reconhecimento facial", ele preferiu então, voltar ao terreno mais reconfortante e simpático de um rosto de criança.

Para alguns poucos, o rosto vincado evocou calma e contentamento: uma sensação de envelhecer tranquilo e “sem filtros”, uma certa aura de dignidade e até mesmo um desejo de honrar suas rugas, mesmo conscientes das perdas envolvidas no envelhecer. Essas pessoas sentiram uma grande empatia e se reconheceram plenamente no velhinho da imagem, e aparentemente curtiram o que viram. Esses relatos, no entanto, foram menos frequentes.

Seja como for a imagem do FaceApp em si é o que menos importa, o que mais importa é o que projetamos nela. Uma das lições fundamentais da psicologia junguiana é que a psique produz realidade: ela é capaz produzir esperança, mas também produz monstruosidades. Projetamos nossos conteúdos inconscientes a todo o tempo, inclusive nas imagens do FaceApp, por mais hiperrelistas que pareçam ser.

A experiência analítica mostra que não é incomum que pessoas próximas do fim da vida, ou seriamente adoecidas, relatem sonhos de retorno à infância, num movimento tipicamente compensatório da psique. É curioso que na brincadeira do aplicativo, um movimento análogo se manifeste. O inconsciente está sempre em atividade, sobretudo quando estamos “brincando".

Um dos ensinamentos mais incisivos de Jung em relação a proximidade da finitude talvez seja o seguinte: "As pessoas que mais temem a morte são aquelas que, quando jovens, mais temeram a vida”. Quem sabe a “brincadeira" do envelhecer não possa funcionar como um chamado para um certo tipo de despertar? Um lembrete de que a vida é curta e que, dependendo de nossas escolhas, ela possa acabar se tornando uma vida pequena? Ou ao contrário, uma vida mais significativa, mais ampla, uma vida pela qual valha a pena honrar nossas experiências, nossos erros e acertos, nossas rugas e cabelos brancos?

Talvez o app da velhice nos mostre a urgência de vislumbrar uma vida em que o outro não seja sempre o culpado por nossas frustrações e desejos não realizados, uma vida na qual tomemos um impulso de coragem para nos livrar de velhos e conhecidos fantasmas e abraçar, em muitos casos pela primeira vez, a incerteza e a ambiguidade de um futuro nem sempre escrito nas estrelas ou previsto pelo oráculo, mas esculpido pela nossa mais profunda e íntima necessidade de SER aquilo que merecemos e precisamos, de viver segundo a nossa própria norma, que é de onde se origina a palavra autonomia. Quem sabe da próxima vez que fizermos uma brincadeira como a FaceApp, o conteúdo projetado na nossa imagem da velhice seja um pouco menos inquietante?

Freud disse certa vez que “brincando pode-se dizer muitas coisas, até mesmo a verdade”. Por vezes uma simples “brincadeira" de internet pode nos aproximar de verdades insuspeitas e nos oferecer uma boa oportunidade para refletir.

Em tempo:

Na semana passada tratei da psicologia do entardecer, usando como pano de fundo o filme de Almodóvar “Dor e Glória”. Acredito que seja uma leitura complementar à coluna de hoje. Aqui vai o link (https://bit.ly/30AJ8U8).

Flávio Cordeiro é Psicólogo e Psicoterapeuta

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