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Burning Man

Robert Bruce Anderson (Burning Man Gallery) -
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Burning Man é um festival que reúne anualmente cerca de 50 mil pessoas num lugar altamente improvável: o Black Rock Desert em Nevada, nos Estados Unidos. É um evento que oscila entre Woodstock e um festival religioso pagão: uma verdadeira cidade é montada no meio do nada, com regras próprias e gente de todo o mundo interessada em celebrar a criatividade, a psicodelia, a diversidade, a liberdade de expressão, a vida. Lá não há moeda, tudo é trocado, não há compra, não há venda, não há competição. Durante uma semana as pessoas são encorajadas a viverem suas fantasias, a experimentar, a colaborar e a ousar. O que a sociedade contém e proíbe, o Burning Man acolhe e estimula.

Macaque in the trees
(Foto: Robert Bruce Anderson - Burning Man Gallery)

Não se sabe bem porque, mas na primeira edição do festival, em 1986, os fundadores do Burning Man, Larry Harvey e Jerry James, construíram uma escultura gigantesca de uma figura humana, toda feita em madeira, e ao final, simplesmente decidiram atear fogo ao gigante e contemplar as chamas. Harvey descreveu esse momento como um ato espontâneo e radical de autoexpressão. Foi essa cerimônia altamente simbólica que acabou dando nome ao festival e, desde então, esse é um momento quase sagrado, que marca o fim do Burning Man: o momento em que o homem é consumido pelo fogo.

Me pergunto o que esse homem em chamas representou pela primeira vez na mente daquelas pessoas. O que estava sendo calcinado ali? Que tipo novo de humanidade renasceria das cinzas do velho homem purificado pelo fogo? Na minha imaginação, talvez a queima do gigante de madeira simbolizasse a calcinação dos excessos sobre-humanos do mundo contemporâneo: o excesso de trabalho, o consumo excessivo que degrada o planeta e destrói laços comunitários, o consumo desregrado de tecnologia, enfim, tudo aquilo que consumimos em excesso e que ao final acaba por nos consumir. No pólo oposto, o homem em chamas talvez simbolizasse a reconexão com o que é essencial para o ser humano mas foi esquecido em algum lugar remoto do tempo.

Todo símbolo contém uma forte carga de mistério que ultrapassa em muito a lógica meramente racional. Essas manifestações espontâneas e inexplicáveis do inconsciente coletivo formam a base de muitas práticas religiosas. Elas re-ligam as pessoas e criam fortes laços de pertencimento e sentido. Talvez seja esse o segredo do sucesso do Burning Man: um ritual de religação arcaico que compensa o excesso de lógica, conectividade e trabalho que caracterizam o mundo da hipermodernidade.

Nos dias de hoje não é preciso viajar ao deserto para presenciar homens e mulheres em processo de combustão. Basta olhar na mesa em frente ou na baia ao lado, seja na start-up moderninha ou na grande indústria, no hospital ou na universidade, no mercado financeiro ou nas bancas de advocacia. Em todo mundo empresarial há um Burning Man pegando fogo, sendo consumido em praça pública pelas chamas do excesso de trabalho. Esse fenômeno tão próximo se tornou conhecido como Burnout ou Síndrome do Esgotamento Profissional. No mês passado, o Burnout foi reconhecido pela Organização Mundial de Saúde como fenômeno global. Isso significa que o Burnout entra para o time dos sofrimentos humanos causados pela nossa própria cultura.

A pressão por resultados é muito familiar a qualquer pessoa em busca de realização profissional. Há momentos, no entanto, em que a pressão saudável se transforma em opressão sobre-humana e, justamente quando começamos a acreditar que somos gigantes invencíveis, é que a madeira começa a queimar, e como há muito tempo perdemos contato com com o sinais emitidos por nosso corpo ancestral, só vamos notar os efeitos da chama que nos consome quando as cinzas já começaram a se espalhar por todo lado: irritabilidade constante, insônia, dores musculares, fadiga, dificuldade de concentração, alterações intestinais, sentimento de incompetência, alterações nos batimentos cardíacos, etc. São todos sintomas da Síndrome do Esgotamento Profissional. São “cinzas" do profissional em combustão, são sinais de que estamos nos transformando em Burning Man.

Os Burning Men não consomem somente a si próprios: quando ocupam posições de liderança é possível que queimem tudo a seu redor, sobretudo seus subordinados. Os filhos e cônjuges dos Burning Men e Burning Women sofrem com o calor de suas chamas e “aprendem" intuitivamente que é melhor afastarem-se e protegerem-se do risco de queimaduras de terceiro grau. Paradoxalmente, as relações humanas dos Burning Men tendem a se tornar distantes: com o tempo elas esfriam e congelam. Vem daí um dos mais frequentes sintomas do Burnout: o isolamento.

Mas como surge um Burning Man? Me arrisco a especular que um Burning Man é o resultado do encontro da cultura empresarial insaciável da hipermodernidade com o desejo do indivíduo por um reconhecimento muito antigo que lhe faltou em algum lugar e que com o tempo passou a habitar seu inconsciente.

O Burning Man é alguém que precisa provar ao mundo que o patinho feio era um cisne que nunca foi reconhecido. É bastante comum que o espelho lhe mostre as penas brancas e a graciosidade do cisne, e mesmo assim o fantasma do patinho continue lhe assombrando a cada queda de bolsa, a cada oscilação de mercado. O Burning Man precisa estar sempre em alerta, produzindo mais e mais, mostrando para o mercado, para acionistas e patrões, o que inconscientemente continua tentando provar para aquelas figuras que um dia falharam em reconhecer seu valor. Vive essa tarefa incansável, mesmo que para isso seja consumido pelas chamas do excesso de trabalho, de controle e de preocupações.

Muitas vezes, é somente quando o esgotamento infringe perdas consideráveis que o Burning Man acorda de seu longo passeio entre as chamas. Quando há perdas na saúde, no casamento, na relação com os filhos - que muitas vezes adoecem, na tentativa de serem notados e receberem alguma atenção. É só então que surge o reconhecimento de que algo precisa mudar. É preciso reconhecer que os aplausos da sala de reunião são as vaias da sala de estar.

Uma última especulação: talvez o fato do Burning Man ser uma escultura gigante, simbolize o extremo narcisismo do homem que se auto-consome e ainda por cima insiste em se denominar sapiens.

* Flávio Cordeiro é psicólogo e psicoterapeuta

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