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Viagem pela Hiperrealidade Cotidiana

Jenn Pic (Pixabay) -
Mask II - Escultura do artista hiperrealisra Ron Mueck
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Assisti nesse fim de semana no Centro Cultural Banco do Brasil, a exposição “50 anos de Realismo - do Fotorealismo à Realidade Virtual”. São cerca de 90 obras, de trinta dos mais renomados artistas desse movimento no mundo. O que mais intriga na arte hiperrealista é o convite a questionar o tempo todo aquilo que nossos sentidos nos fazem crer que é a realidade: estou diante de uma fotografia ou de uma pintura? É como se diante de uma obra hiperrealista estivéssemos num espaço intermediário entre uma suposta “reprodução fiel do real” e uma “representação ficcional da realidade”, essa última, sempre significando algum grau de intromissão da imaginação humana no real. Nesse caso, como afirma Paul Klee (outra exposição que vale a pena conferir no CCBB): “a arte não reproduz o visível, ela torna visível”.

No hiperrealismo, a escolha de temas e objetos do cotidiano (lanchonetes, latas de refrigerantes, condimentos, ferros velhos, estacionamentos, prédios de shopping centers, etc.) reforça o estranhamento: há algo tão familiar na cena cotidiana que aquilo "só pode ser real”, mas ao mesmo tempo há a certeza perturbadora de que aquilo que eu julgo ser "a" realidade foi manipulado para "parecer real”. Isso nos leva inevitavelmente a pergunta: afinal, o que é o real? Essa é uma questão que tem mobilizado filósofos e artistas de Platão aos hiperrelistas. Agora, os mais novos equipamentos de Realidade Virtual chegaram para elevar esse questionamento à enésima potência e criar um novo conceito de realidade: a realidade mista.

Macaque in the trees
Mask II - Escultura do artista hiperrealisra Ron Mueck (Foto: Jenn Pic (Pixabay))

Minha primeira vivência impactante com a Realidade Virtual aconteceu há cerca de três anos quando assistia a uma apresentação da embaixada da Unicef no festival de SXSW em Austin, Texas. A Unicef criou uma série de minidocumentários em Realidade Virtual com o objetivo de sensibilizar os principais líderes mundiais para o problema dos refugiados. Coloquei os óculos de Realidade Virtual e fui parar no acampamento de Za'ahari no meio do deserto da Jordânia, onde vivem cerca de 80.000 refugiados. (O nome do documentário é Clouds Over Sidra e pode ser visto aqui https://www.with.in/watch/clouds-over-sidra/)

Toda a história é narrada pela menina Sidra de 12 anos. Sidra me conduziu pelo acampamento enquanto contava sua rotina, que é muito parecida com a de muitas meninas da sua idade em qualquer lugar no mundo: vai à escola, pratica esportes (futebol), almoça com a família. Vou caminhando por dentro do acampamento: em muitos momentos a emoção aflora e os meus olhos enchem d’água. O olhar resignado das crianças que quase esbarram em mim enquanto fazem fila para a escola, a rotina de exercíciosdos homens fortalecendo seus corpos para uma longa travessiaque imaginam "logo surgirá”, o almoço em família, que provavelmente já foi mais feliz (quando a mãe de Sidra tinha à disposição seus temperos favoritos), enfim, tudo é muito “real" e por isso me toca quase fisicamente, mas emocionalmente, toca muito mais.

Assim como a arte hiperrealista escolhe objetos familiares, para questionar o status da realidade, na experiência que vivi no campo de Za’ahari, é exatamente essa banalidade cotidiana que provoca incômodo, pois ela nos leva a questionar: como é possível aceitar que se viva uma vida "normal" num lugar em que a realidade é completamente ficcional? Uma vida aparentemente normal num acampamento que no fundo é uma prisão? Uma existência falsificada no meio de um deserto onde a vida está condenada à paralisia. Perceber isso “na pele” emociona e choca quem “vive" a experiência de Realidade Virtual de "Clouds Over Sidra”. A hiperrealidade nesse caso é o que nos leva primeiro a sentir, depois a questionar, o absurdo da realidade.

Essa nova forma de narrativa elimina a distância confortável do mero expectador. Você não “assiste" a algo distante e passivamente, você "se torna parte” do drama que está se desenrolando e isso o torna mais sensível à realidade. A sensibilidade é a principal arma contra a banalização do sofrimento. Isso nos leva de volta a pergunta: o que é real? Uma das respostas possíveis é: tudo aquilo que é emocionalmente real para você.

É bastante comum ouvir, diante de um problema angustiante, a seguinte frase: “Não se preocupe tá na cara que é só psicológico”. Esse “é só psicológico” quer fazer crer que o que é psicológico não é “real”. A prática da psicoterapia nos dá provas cotidianas do contrário: a realidade psicológica é precisamente o que transforma ou distorce a realidade.

O conceito de "Realidade da Psique" é um dos pontos fundamentais numa psicoterapia junguiana. Um exemplo: dois estudantes acabam de receber a notícia de que foram aprovados para uma das melhores universidades do país no curso de medicina. Nesse momento, um deles está comemorando com os amigos e parentes, o outro está tendo uma crise de ansiedade, já antecipando as dificuldades, as provas, as horas de estudo ininterrupto e a perda do lazer. Há um só fato “real”, mas ele importa muito pouco diante da realidade da psique de cada um dos estudantes. É ela que transforma o fato em sucesso ou punição. O inconsciente produz realidade.

Um outro exemplo: como desconsiderar a perda e o sofrimento de um jovem em profunda depressão após o término de uma relação amorosa, ainda que, só após um tempo, se venha saber que o jovem e sua amada jamais tenham se encontrado presencialmente? O novo real não é necessariamente presencial, ignorar essa realidade é ignorar a realidade da psique, que em tempos da realidade virtual torna o conceito de “real" ainda mais complexo e poroso. A realidade é virtual, mas as consequências emocionais são reais, bem reais.

Novos modos de viver, implicam novas formas de amar, trabalhar, conhecer e também novas formas contemporâneas de sofrer. Nesse mundo hipermoderno, as lições de Jung se mostram extremamente atuais e seu conceito de “Realidade da Psique” torna-se especialmente relevante tanto na prática clínica quanto na compreensão mais ampla do mundo intermediado por telas e múltiplas camadas de realidade.

Há uma outra consideração de Jung que, em minha opinião permanece mais atual do que nunca: “Até você se tornar consciente, o inconsciente irá dirigir sua vida e você vai chamá-lo destino.” A psique produz realidade: ela é capaz produzir esperança, mas há momentos em que produz monstros e ainda por cima quer nos fazer crer que a monstruosidade é destino inevitável. O inconsciente produz realidade e a arte nos ajuda a adquirir consciência e questionar o absurdo que por vezes a realidade nos impõe, talvez por isso seja tão incômoda. Como lembra Fernando Pessoa, “Pensar incomoda tanto quanto andar à chuva.”

PS: O título da coluna é uma paráfrase do título do livro de Umberto Eco “Viagem na Irrealidade Cotidiana”

Flávio Cordeiro é psicólogo e psicoterapeuta