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Entre Swann e Guermantes: novos percursos no mundo pós-moldura

Gerd Altmann - Pixabay -
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Entre as mais vívidas lembranças do narrador de “Em Busca do Tempo Perdido”, de Marcel Proust, estão os passeios em família, na cidadela de Combray, no interior da França. A paisagem campestre, a natureza exuberante, o canto dos pássaros desafiando o silêncio, a beleza do rio Vivonne, as diferentes tonalidades dos pinheiros, o significado da chuva, a história de cada propriedade, de cada personagem—que nunca é apenas um indivíduo, mas, seguindo a tradição ancestral, o representante de uma linhagem intrincada que remonta gerações; tudo conspira para nos lembrar que, no fluxo de consciência do narrador, um passeio nunca é apenas um passeio, mas uma elaborada alquimia de sensações, memórias, encontros e odores. Cada detalhe importa, cada palavra significa. Nesses nossos tempos velozes, Proust nos convida a degustar cada frase, sem pressa, com a calma de um tempo quase medieval. É uma viagem temporal que nos desacostumamos, e quase já não nos permitimos fazer.

Macaque in the trees
(Foto: Gerd Altmann - Pixabay)

Há uma particularidade nesses passeios pelos campos de Combray: havia apenas duas possibilidades de percurso, ou dois lados. Ou bem seguia-se pelo caminho de Swann, um passeio curto, que passava pela propriedade do Sr. Swann, importante personagem da trama; nesse caso usava-se o portão principal da propriedade para dar início a caminhada; ou, se fizesse bom tempo, deveria-se tomar o portão dos fundos, pelo jardim, e seguir o Caminho de Guermantes, um passeio mais longo, desaconselhável para tempos chuvosos; esse era o caminho utilizado outrora pelos duques e duquesas da região. Não havia o que discutir ou questionar, não havia conflito: a tradição ditava o caminho a seguir, sem muito espaço para invenções ou ousadia: um caminho ou outro, ponto final.

Nos dias de hoje, em que as molduras rígidas, que por séculos estruturaram a civilização ocidental, estão se transformando de maneira acelerada, enxergar o mundo sob a ótica rígida do “ou isso, ou aquilo”, reduz significativamente nossa capacidade de compreender as novas formas de viver: novos comportamentos, novos modelos de trabalho, novas dinâmicas econômicas, tecnologias disruptivas, as múltiplas expressões do amor e as novas tipologias de famílias, que assim como tudo o que é vivo e pulsante, está em permanente processo de transformação. Entre Swann e Guermantes, milhares de novos percursos se abrem para alma humana. Isso é a um só tempo libertador e angustiante: é a característica paradoxal do mundo pós-molduras.

É claro que as molduras que limitam, também protegem, e sem elas o homem sente-se vulnerável. De fato, sempre que o novo se insinua sobre as frestas das velhas molduras há muitas ameaças no ar. No entanto, viver com medo da morte (real ou simbólica) é uma das muitas formas de se morrer em vida. O indivíduo que vive na rigidez do “ou isso ou aquilo”, na busca do improvável “ou preto ou branco”, acaba por perder a fluidez necessária para lidar com as imprevisibilidades de um mundo com cinquenta mil tons de cinza.

Uma parte significativa do processo psicoterapêutico consiste em ajudar o indivíduo a tomar consciência do que se tornou rígido, fixo, e disfuncional em sua vida. A terapia ajuda a tomar consciência dos “contratos” inconscientes que “assinamos” sem saber com as expectativas dos outros: pais, mães, cônjuges e demais representantes da consciência coletiva: os agentes das molduras rígidas, que sem saber internalizamos em nosso ser. Esses “contratos” são recheados de “não posso”, “não devo”, “não me é permitido”, “não será aceitável”, “não é correto”, “não é justo”, “não é moral”. É por aí que muitos desejos genuínos são asfixiados e vocações verdadeiras são abandonadas: a profissão que “não paga a conta”, o novo amor que vai gerar conflito familiar, o relacionamento insatisfatório que deve ser mantido, afinal já dura tanto tempo que é melhor nem mexer. A terapia apenas amplia a consciência: a decisão de mudar ou manter o que incomoda, mas é familiar, é sempre do indivíduo, o verdadeiro dono de seu processo.

Muitos quadros de sofrimento psicológico são amplificados pela rigidez. As circunstâncias se alteram, requerem novas posturas, mas nossas respostas não se transformam, estão petrificadas. Adoecimento psíquico é quase sempre sinônimo de fixidez. É o congelamento diante de um conflito: a energia psíquica fica estagnada, e seu acúmulo acaba por provocar transbordamentos de emoções, que se fazem notar sob a forma sintomas: ansiedade, angústia, tristeza, desesperança e somatizações de toda ordem. A neurose é a estrutura rígida, que um dia foi protetora, mas que agora começa a apresentar rachaduras e infiltrações. Ela tem seu valor, pois muitas vezes, é o que nos tira de um estágio de acomodação letárgico, ainda que de forma dolorosa.

O desajuste entre o ambiente que muda e nossas respostas fixas é a principal fonte das crises existenciais. São os becos sem saída. Sem saída por quê? Porque a saída não se encontra no “ou isso ou aquilo”, mas em algum lugar entre Swann e Guermantes, um lugar intermediário, o caminho do meio: um novo percurso que será preciso inventar. Um dos nomes desse caminho na psicologia junguiana é “sentido”. Aquilo que “não faz sentido”, mas se recusa a morrer em nós, é a quase sempre a principal fonte de desacordo interno. A vida sem sentido adoece mais do que qualquer neurose.

Uma das principais delícias a serem saboreadas na escrita de Proust na grande viagem de “Em Busca do Tempo Perdido” é o fluxo de consciência. Da mesma forma com que narra magistralmente cada detalhe do que seus sentidos capturam, Proust nos convida a mergulhar com a mesma intensidade na vastidão da alma humana. Não é o apenas o tempo perdido que busca, mas o “Self” que procura e resgata. “Em Busca do Tempo Perdido” é uma viagem interior, um exercício profundo de descoberta de si mesmo, pois, como Proust bem frisou, “a verdadeira viagem de descoberta não consiste em procurar novas paisagens, mas em enxergar com novos olhos”.

O caminho entre Swann e Guermantes, o caminho inventado do sentido, depende, fundamentalmente, da descoberta desse novo olhar.

Flávio Cordeiro é psicólogo e psicoterapeuta

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