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Desculpe pelo Transtorno

Sabine K - Pixabay -
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Seguindo uma longa tradição herdada da medicina e da psiquiatria do século XIX, o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais da Associação Americana de Psiquiatria (APA), considerou, até a década de 70, a homossexualidade como um transtorno mental. O ano de 1973 marca o início de uma transformação nessa longa trajetória. Nessa ocasião, a APA solicitou aos seus membros que arbitrassem a respeito do tema. O resultado foi que 5.854 psiquiatras votaram pela remoção da homossexualidade do DSM, enquanto 3.810 votaram por sua manutenção. Foi preciso esperar até 1987 para que a homossexualidade fosse inteiramente excluída do DSM. Deixou de ser considerada, pelos psiquiatras, um transtorno mental.

Macaque in the trees
(Foto: Sabine K - Pixabay)

Esse registro histórico é importante para refletirmos, como cidadãos, sobre a forma que uma categoria de “doença mental” pode ser produzida. Um dos mais influentes pensadores do século XX, o filósofo Michel Foucault estudou, em duas obras magistrais (A História da Loucura e a História da Sexualidade), as diferentes maneiras pelas quais o ocidente lidou com as doenças mentais e com a sexualidade ao longo da história. O que Foucault concluiu tem muito a ver com a inclusão e a posterior exclusão da homosexualidade nos manuais de psiquiatria: tanto a doença mental quanto as formas de lidar com a sexualidade, são produtos de um tempo histórico. Elas revelam a forma com que uma dada sociedade, num determinado momento da história, lida com as diferenças. De maneira inclusiva ou excludente, de maneira acolhedora ou patologizante.

Imagino aquela votação de 1973 como uma daquelas placas que se colocam nas obras: “Estamos em reforma para melhor atendê-lo, desculpe pelo transtorno causado”. Um diagnóstico psiquiátrico equivocado produz muitos transtornos. No caso da homossexualidade, o diagnóstico reforça estereótipos e produz o adoecimento compulsório de uma das múltiplas formas de existir. A mudança no DSM, reconheceu que “norma” não é saúde, e aquilo que escapa a norma não é doença: é diferença.

Mas por que falar de algo que parece tão distante e superado? Remeto essa discussão à recentíssima decisão do STF (abril deste ano) de proibir a chamada “prática de reversão sexual” A decisão do STF reafirma o entendimento do Conselho Federal de Psicologia (CFP), impedindo uma violação grave dos direitos humanos. Essa decisão tem repercussões importantes, pois onde não há doença, não pode haver tratamento ou a ideia de cura. Não se pode "tratar" a existência, não se pode “curar" um modo de ser no mundo.

Mas de onde vem essa persistência em curar o que não é doença? Esse furor curandis? Uma das respostas mais evidentes é a homofobia. O termo homofobia remonta à década de 60, com o psicólogo George Weinberg. Weinberg ficou chocado com o nível das reações agressivas que suas palestras sobre as injustiças e as atitudes negativas em relação à homossexualidade provocavam. Ele foi ameaçado de morte por um ouvinte enquanto dava uma entrevista numa rádio, e o autor da ameaça foi encorajado pelo próprio entrevistador, ao vivo, a concretizar sua ameaça; além disso uma igreja que iria sediar sua palestra teve que ser esvaziada em função de uma ameaça atentado à bomba. Tentando entender o que estava por trás de um comportamento tão violento, Weiberg constatou que estava sofrendo as consequências de uma reação fóbica, sendo a fobia um medo irracional. Em 1967, ele criou o termo homofobia para descrever essa reação irracional ao tema da homossexualidade.

A homofobia parece ter duas maneiras principais de se constituir: uma se dá pelo ambiente cultural no qual o indivíduo se desenvolve. Os estudos do psicólogo Gregory Herek (Attitudes towards Lesbians and Gay Men), demonstram que pessoas com posturas anti-homossexuais tendem a ser autoritárias, conservadoras, vindas de um ambiente religioso no qual a homosexualidade é vista como negativa e a ter quase nenhum contato com pessoas homossexuais. O ambiente cultural contribui fortemente para a formação e perpetuação da homofobia.

A outra forma pode ser melhor compreendida por meio de um estudo de 1996, conduzido pelos pesquisadores Henry Adams, Lester Whright e Bethany Lohr da Universidade de Georgia. No experimento eles dividiram dois grupos: 1) homens heterossexuais homofóbicos e 2) homens heterossexuais não homofóbicos. Foram colocados medidores de excitação e ereção no pênis de cada participante. Os dois grupos foram submetidos a filmes com cenas de a) sexo heterossexual, b) homossexual feminino e c) homossexual masculino. Curiosamente o grupo de homens homofóbicos teve mais excitação e ereção quando assistiam a cenas gays masculinas do que o grupo não homofóbico. Embora as evidências fossem irrefutáveis, os homofóbicos negavam terem ficado excitados ou tido ereção. Este exemplo sugere que a repulsa age como defesa contra um desejo impossível de ser reconhecido.

Quando o inconsciente trai o discurso consciente adentramos ao reino da sombra. Como já tive oportunidade de explorar nessa coluna, a sombra é tudo aquilo que não aceito em mim, que me é insuportável, aquilo que tenho pavor de reconhecer e que desafia meu senso de “eu estável”, mas também na sombra estão meus potenciais não reconhecidos e novas possibilidades de relação com o outro. Aquilo que aprendi ser inapropriado, sujo ou vulgar não pode fazer parte de mim, logo precisa ser projetado para fora. Muito preconceito e discriminação, incluindo a homofobia, é resultado do mecanismo de projeção da sombra. O indivíduo homossexual seria então aquele capaz de realizar um desejo que me apavora, que toca minha sombra, pela mera possibilidade de se manifestar em mim. Para exorcizar minha sombra, devo evitá-lo, puni-lo, curá-lo ou até aniquilá-lo: 8.027 pessoas LGBTs foram assassinadas no Brasil entre 1963 e 2018 em razão de orientação sexual ou identidade de gênero.

A homofobia tem sido considerada uma das principais causas de adoecimento psíquico de pessoas homossexuais. Uma das formas em que ela opera é a homofobia internalizada. O que isso significa? Significa que a criança ou adolescente, que se desenvolveu em torno de um ambiente homofóbico, acaba por adotar a respeito de si mesmo, as mesmas crenças agressivas sobre a homossexualidade, que lhe são comunicadas pelos seus entes mais próximos.

Os efeitos inconscientes de longo prazo da homofobia internalizada contribuem para ansiedade crônica, depressão, sentimento de inadaptação no ambiente escolar, no trabalho e no amor. Se internalizo que o que sinto é vil, desprezível e condenável, como existir de maneira expontânea sem que um acusador interno me torture a cada vez em que expresso livremente o meu ser?

A homofobia causa transtornos e a maneira institucional como uma de sociedade encara a discriminação e preconceito, produz ou reduz adoecimento. Nesse sentido, a decisão do STF e a atuação do CFP devem ser saudadas como marcos civilizatórios.

Para além da esfera pública, no entanto, há uma tarefa individual intransferível: examinar com atenção nossos preconceitos. Eles nos aproximam do que desconhecemos em nós, nos aproximam de nossa sombra. Essa é uma tremenda oportunidade de crescimento pessoal. Aqui me parece oportuno relembrar a conhecida frase do psiquiatra suíço Carl Jung, que inspirou o nome de nossa coluna: “Quem olha para fora sonha, quem olha para dentro desperta”.

Nosso despertar como sociedade mais humana, inclusiva e plural, e portanto mais criativa dinâmica e moderna, depende da ampliação da consciência individual de cada um, sobretudo dos profissionais que lidam diretamente com a saúde mental, para evitar, assim se espera, que novos transtornos sejam “causados”.

Flávio Cordeiro é psicólogo e psicoterapeuta.