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O inferno são os outros. Será?

Reprodução de vídeo -
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Na literatura ocidental há pelo menos duas grandes narrativas que moldam nossa visão do inferno. A primeira é a Divina Comédia do poeta Dante Alighieri, que inventou, inspirado na mitologia greco-romana, um engenhoso sistema de suplícios: os gulosos ficam atolados na lama sob uma permanente chuva de granizo; maus conselheiros são afundados no gelo com a cabeça de fora para que suas lágrimas congelem; os hereges são sepultados em túmulos abertos de onde saem labaredas, e os ladrões são picados por serpentes por toda a eternidade. O inferno de Dante é um lembrete da moral cristã.

O curioso é que para atravessar o inferno, Dante não tenha sido ajudado por nenhum santo católico, mas por um pagão, o poeta clássico Virgílio. É ele quem salva Dante das feras, o protege dos demônios e o estimula a seguir em frente nos momentos em que Dante sente que sua própria fé fraqueja. Virgílio, que ajudou Dante a cruzar a barra pesada do inferno, talvez tenha sido o primeiro psicoterapeuta da história da literatura.

Macaque in the trees
(Foto: Reprodução de vídeo)

A segunda imagem marcante do inferno na literatura ocidental é a do filósofo existencialista Jean Paul Sartre. No inferno de Sartre não há demônios chifrudos nem suplícios. O inferno sartreano é uma sala fechada, com uma decoração cafona. O que condena uma pessoa ao inferno existencialista não é faltar contra os mandamentos cristãos, mas não assumir suas responsabilidades; se omitir em momentos chave da vida. Na filosofia de Sartre o homem é eternamente responsável por sua liberdade. Lembremos que a peça Entre Quatro Paredes é escrita em plena segunda guerra mundial, e uma parte dos franceses havia se tornado colaboracionista do regime nazista.

No inferno de Sartre não há espelhos. As pessoas se vêem apenas pelo olhar do outro: é esse olhar que recorda as omissões do condenado e que justifica a frase célebre: “o inferno são os outros”. A pena máxima no inferno existencialista é a convivência eterna com esse olhar que espelha a falta de coragem em vida.

Mas será mesmo que inferno são os outros? O inferno está sempre fora de nós? Qual a nossa parcela de responsabilidade por nosso inferno interior?

Na psicologia Junguiana, há um conceito muito útil para entender como lidamos com aquilo que julgamos ser nosso inferno interior. Todos possuímos uma parte em nós que julgamos imoral, inaceitável e que portanto tendemos a não reconhecer e a expulsar de nossa consciência a qualquer custo. A essa parte não reconhecida, Jung denominou "Sombra". A sombra é o inaceitável em nós.

Quando não reconhecemos nossa sombra, somos sempre bons cidadãos, bons colegas, bons cônjuges, bons pais e mães, não invejamos, não bajulamos, não negligenciamos, não somos egoístas, nem consumistas e muito menos trapaceamos. Assim como Dante, damos um jeito de nos colocarmos no paraíso.

Dante não mandou apenas os pecadores para o inferno, mandou também seus inimigos políticos. Ou seja, arrumou uma forma de punir no além os desafetos que não conseguiu vencer em vida. Quem você manda para o inferno revela muito sobre você. Uma característica comum às pessoas que desconhecem sua sombra é expulsarem esse conteúdo inaceitável projetando-o no outro. Esse é um mecanismo bem observável na primeira infância: as crianças pequenas quando tropeçam em um galho aprendem a bater no “galho mau” e a culpá-lo pelo seu desastre. Nessa idade elas ainda precisam localizar o “erro" fora delas. A projeção da sombra no outro é um fenômeno análogo, porém mais sofisticado.

Projetamos nossa sombra preferencialmente naqueles que detêm características que secretamente invejamos ou tememos que se manifestem em nós. Jung estimulava seus pacientes a prestarem bastante atenção nas pessoas que mais lhes incomodavam. Elas costumam ser excelentes espelhos da nossa sombra.

Para a pessoa muito distante de sua sombra, o inferno são os outros, sempre. O processo de amadurecimento psicológico passa por retirar dos outros a projeção do inaceitável em nós, por atravessar nosso inferno interior e reconhecer nossas virtudes e deficiências, sob pena da repetição dantesca dos mesmos erros. Com sorte talvez surja um Virgílio para nos ajudar na travessia.