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Com quantos likes se faz uma persona?

Pixabay -
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Na sua conferência anual em abril, o Facebook anunciou que está testando no Instagram uma nova interface na qual os “likes" se tornarão invisíveis publicamente. O número de likes de uma postagem ficará disponível apenas para o usuário que fez o post. A ideia, segundo a plataforma, seria diminuir a pressão pela popularidade a qualquer preço. Há estudos demonstrando que os likes (ou sua ausência) têm o poder de afetar a saúde mental e a autoestima das pessoas.

Um estudo em particular, “The Power of theLikein Adolescence: Effects of Peer Influence on Neural and Behavioral Responses to Social Media”, publicado em maio de 2016 na Revista Psychological Science, utilizou a técnica de imagem por ressonância magnética funcional, e demonstrou que os “likes" ativam os mesmos circuitos cerebrais ativados ao se comer uma barra de chocolate, transar ou ao ganharmos uma boa soma em dinheiro. Essa área do cérebro está relacionada ao mecanismo de recompensa e prazer, o núcleo accunbens. Para começo de conversa, nada errado com obter prazer. A questão problemática é que quanto mais somos recompensados por um estímulo específico, mais tendemos a buscá-lo ativamente, sobretudo se ele for fácil de obter. Esse é precisamente o mecanismo de funcionamento das drogas. No mundo contemporâneo, isso significa que nos tornamos viciados em “likes”, uma “substância” relativamente barata.

Macaque in the trees
(Foto: Pixabay)

Isso não chega a ser uma novidade. Há um conhecido estudo feito em 1954, com os famosos ratinhos de laboratório, realizado pelos pesquisadores James Olds e Peter Milner da McGill University. Eles introduziram eletrodos (fios elétricos) em regiões profundas do cérebro dos ratinhos que batiam as patas em barras de ferro para receber em um estímulo elétrico naquela região. Os ratos batiam nas barras de forma tão exagerada que, às vezes, deixavam até mesmo de comer e dormir para continuar batendo suas patinhas e, assim, continuar recebendo os estímulos. Os cientistas descobriram que essas áreas que ativavam o comportamento excessivo de autoestimulação, era a área relacionada ao sistema de recompensa e prazer e a drogas.

A explicação neurofisiológica para esse fenômeno é que, assim como o chocolate, sexo e drogas, os likes são um poderoso disparador de dopamina, o neurotransmissor responsável, dentre outras coisas, pela liberação de excitação e prazer. Mas por que likes liberam dopamina? Porque na nossa cultura eles passaram a significar reconhecimento social, atenção e afeto, em resumo: prazer. A cultura cria e recria constantemente os sinalizadores de reconhecimento social; os antropólogos chamam isso de “marcadores sociais de status”, antes eles se resumiam a bens, hoje eles são mais etéreos e simbólicos, como um like. A cultura também afeta nossas emoções: os disparadores de culpa e vergonha por exemplo, variam de cultura para cultura. Ou seja, se não recebo likes, talvez seja porque não sou bom o suficiente, bonito o bastante, não viajo para lugares incríveis, não participo de festas memoráveis com pessoas fantásticas. E chego a essa conclusão por comparação com os likes alheios. Numa cultura voltada para a exterioridade, posso acabar me convencendo que os likes me definem. Aí mora o perigo.

Há um episódio na série Black Mirror (primeiro episódio da terceira temporada) que retrata com maestria o risco de sermos engolidos pelos likes, a tal ponto de, como os ratinhos de laboratório, esquecermos quem somos e nos entregarmos a busca desenfreada pelo like nosso de cada dia. O episódio se passa em uma sociedade não muito diferente da nossa, em que todos são avaliados o tempo todo a cada interação social. A protagonista é uma jovem insegura, que busca a todo custo entrar para o seleto clube dos “populares”. Ela faz isso com um propósito social claro: as pessoas perdem oportunidades, empregos, namoros, porque são pré-julgadas pelo ranking medido pelo número de likes que recebem. O final do episódio é trágico: na tentativa de ser aceita ela já nem sabe mais quem é de verdade: perdeu toda a sua autenticidade. Talvez seja esse final trágico que o Facebook queira reescrever ao cogitar a mudança na sua interface. Um dado curioso é que a personagem da série passa horas em frente ao espelho ensaiando formas de sorrir que renderiam mais aprovação social. De fato é preciso muito ensaio para que um gesto falso pareça autêntico, mas isso é obtido a um alto custo psicológico: a perda de si.

Quando o “like” domina a pessoa, ela começa a se identificar com a personagem que criou. Em busca de likes, ela pode começar a “farejar" o que agrada à plateia, e a se transformar, ao menos em aparência, naquilo que a sua audiência aplaude. Aqui, uso os likes apenas como metáfora para um comportamento que transcende em muito à internet, embora seja potencializado por ela. Aos poucos, sem que a pessoa perceba, os likes se tornam os tijolinhos que constroem a sua persona - a máscara social que representa como gostaríamos de reconhecidos socialmente. No fundo ela acaba se transformando no desejo do outro e se tornando o produto dos likes que tanto buscou. É possível ainda, que acredite piamente que ela é a “influencer", quando de fato se tornou “influenced” pelos estímulos (likes) que recebeu. Ela se tornou escrava da sua persona. O risco é tornar-se um papel de parede do que o mundo espera de você.

O termo persona ganhou ampla difusão a partir da psicologia de Carl Jung. Ele usou o termo para designar a "máscara social" que todos nós usamos no nosso cotidiano. Todos nós possuímos uma persona para funcionar no mundo, do contrário viveríamos num estado de nudez psicológica. O problema começa quando nos identificamos com a máscara que usamos e ficamos desorientados caso a retiremos. Acontece bastante com executivos que, depois de um bom tempo de empresa são desligados e perdem seu sobrenome institucional. Sentem-se como se não tivessem mais identidade própria, pois se colaram tanto à identidade do seu cargo na empresa que ela se tornou a dominante de sua personalidade.

Na sua etimologia persona é a palavra latina que designa a máscara que atores usavam no teatro na Roma e Grécia antiga. Quanto mais nos identificamos com a máscara que vestimos, menos investimos no verdadeiro Self - em quem verdadeiramente somos. Conta-se que as máscaras utilizados pelos atores da antiguidade tinham um espelho por dentro, para, ao retirá-la, o ator sempre lembrasse de quem verdadeiramente era. É uma bela imagem para os dias atuais, afinal, é extremamente exaustivo viver por dois: você e seu personagem.

Flávio Cordeiro é psicólogo e psicoterapeuta