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E se você pudesse se tornar imune às dores da vida?

Sobre a utilidade da dor

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O que Jo Cameron, uma simpática senhora escocesa de 71 anos e Wolverine, o mais carismático dos X-Men, têm em comum? Pode parecer ficção científica, mas ambos são imunes à dor. A diferença é que Cameron não é uma personagem da Marvel, é uma ex-professora, bem real, que ao longo da vida colecionou inúmeras queimaduras, cortes, fraturas e cirurgias, e o mais inacreditável: em nenhum desses episódios ela relatou uma dorzinha sequer.

O caso de Cameron foi estudado por pesquisadores em um recente artigo no British Journal of Anaesthesia (https://bjanaesthesia.org/). A explicação para esse fenômeno é que Cameron possui mutações nos genes FAAH e FAAH-OUT, associados à dor e à memória. Essas mutações genéticas fazem com que ela não apenas seja insensível à dor, mas também não tenha reações emocionais em situações nas quais a maioria das pessoas se sentiria ansiosa; como por exemplo, num acidente de automóvel. Durante um acidente que a jogou para fora da estrada e quase lhe tirou a vida, Cameron diz não ter sentido nenhuma alteração sensível em seu estado emocional.

Muitos de nós invejariam Cameron, mas será que a insensibilidade à dor é realmente algo desejável? E quando o assunto é a dor psíquica? Como seria a vida se nos tornássemos insensíveis às dores psicológicas? Há uma passagem na vida de Cameron que sugere uma pista: ela conta que aprendeu a notar quando está se queimando, não pela dor, mas pelo cheiro. Ela diz: "Sendo vegana, não pode haver outra carne queimando na casa". Num paralelo com o sofrimento emocional, a insensibilidade à dor, paradoxalmente nos tornaria mais vulneráveis aos embates da vida e não menos. Anestesiados, teríamos mais dificuldades de sentir os sinais de que algo não vai bem, e menos chances de buscar ajuda e de compreender as situações nas quais nos envolvemos.

Não quero aqui fazer uma apologia à dor, mas apenas sublinhar que o sofrimento psíquico, a depressão, a ansiedade e outros "inumeráveis estados do ser", uma expressão usada pela Dra. Nise da Silveira, têm a função de nos alertar de que "há algo queimando" na alma. Algo que pede reconhecimento e não anestesia.

Em seu recente livro "Good Reasons for Bad Feelings", o psiquiatra evolucionista Randolf Nesse defende a tese de que a existência de estados emocionais tão devastadores como a ansiedade, a depressão e o luto são moldados pela seleção natural. Sua existência derivaria de sua utilidade à preservação da espécie. Existiriam boas razões para estados emocionais ruins. Ele curiosamente utiliza a expressão “sinal de fumaça” para caracterizar a dor psíquica e sua função na preservação da vida.

Essa é uma ideia diferente de uma certa visão de que o sofrimento psíquico pode ser encontrado em algum lugar do cérebro e erradicado. O autor afirma que o sofrimento psíquico é "útil", sobretudo, se entendermos com que propósito se manifesta e se nos dispuséssemos a entender que mensagem nos traz. Resumindo: nossas emoções têm significado. Elas são mensageiras que tentam a todo momento nos alertar sobre as necessidades não atendidas da alma: elas sinalizam que há atitudes a serem postas em prática, ou ao contrário, que padrões repetitivos estão demandando urgente contenção.

Mas por que temos tanta dificuldade para escutar a nossa dor psicológica? Talvez porque o sofrimento psíquico nos fale por meio de uma "língua estrangeira": às vezes sintomas físicos, às vezes por um estado depressivo, às vezes por meio de problemas que se repetem consistentemente em diferentes âmbitos da vida e nos quais tropeçamos de novo e de novo e de novo. É uma linguagem simbólica, que talvez tenhamos desaprendido com o desenvolvimento de uma cultura excessivamente racional e lógica.

Na vida psíquica a dor é muitas vezes o resultado de um conflito que desejamos ignorar, ou que não nos sentimos capazes de enfrentar no momento, ou ainda sobre o qual alimentamos a fantasia de que irá se dissolver num passe mágica. O psiquiatra suíço Carl Jung disse certa vez que quando fugimos dos nossos conflitos, fugimos também da vida. Diante de um paciente ele costumava se perguntar: de que conflito essa pessoa está tentando desesperadamente escapar?

Nossos conflitos por mais dolorosos que sejam, uma vez confrontados, revelam a possibilidade de pavimentar novos caminhos, sem que para isso sejam necessárias mutações genéticas, ou que nos transformemos em algum tipo de super-herói. Muitas vezes é a dor que aponta o caminho.

* Psicólogo e Psicoterapeuta