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É duro ter presidente que não crê na ciência

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Calma, não estou falando do Brasil. Mas da maior nação do mundo. Os Estados Unidos da América, com 329 milhões de habitantes e um PIB de U% 21,5 trilhões (antes da crise do novo coronavírus (Covid-19), registrou, nesta segunda-feira, 6 de abril, quando o mundo se aproxima de 1,300 milhão de casos contabilizados (em testes), mas quando se sabe que a propagação pode ser até 10 vezes maior, e o país presidido por Donald Trump lidera as estatísticas de contaminações com quase 340 mil casos (quase a soma de Espanha e Itália) e cerca de 10 mil mortes.

Peço licença aos leitores para transcrever trechos de um excelente artigo da jornalista Tamara Gil, da BBC, publicado na sexta-feira, 3 de abril. Ela começa lembrando que em dia após os EUA confirmarem seu primeiro caso de coronavírus, em janeiro deste ano, o presidente do país, Donald Trump, garantiu, no Fórum Econômico de Davos (Suíça), que a situação estava sob controle. "É só uma pessoa que veio da China e temos tudo sob controle. Tudo ficará bem", disse ele à emissora americana CNBC.

Os dias se passaram e, apesar das queixas de inação por especialistas e críticos do governo, Trump insistiu que o vírus "desapareceria" como se fosse um milagre. "O risco para os americanos ainda é muito baixo. Quando você tem 15 pessoas... em alguns dias, vai diminuir e ficar perto de zero. É um trabalho muito bom que fizemos", disse Trump em 26 de janeiro. Um mês e meio depois, a maior economia do mundo se tornou o novo epicentro mundial da pandemia de covid-19.

Dados desta segunda-feira (6) dizem que o país tem mais de 245 mil infectados e quase 10 mil mortos, três vezes o número de mortos da China ( 3,3 mil mortes por coronavírus), onde a pandemia surgiu. Os casos na Espanha (135 mil) e na Itália (129 mil) há muito superam os da China, com 15 mil italianos mortos e mais de 13 mil espanhóis. O Reino Unido que tinha tratado o vírus com certo desdém, já tem 48 mil infectados (entre eles o príncipe Charles e o primeiro ministro Boris Johnson) e 6 mil mortos. O Japão deve declarar estado de emergência esta semana.

A própria Casa Branca, agora alarmada, estima que o novo vírus poderia causar entre 100 mil e 200 mil mortes nos Estados Unidos. Apesar dos crescentes indícios do desastre, Trump minimiza o vírus, o tratando como simples gripe e dizia que o governo americano estava fazendo "um bom trabalho".

Mudança de cenários

No fim de janeiro, Trump incumbiu o vice-presidente Mike Pence de liderar uma força-tarefa para combater a epidemia e, em 2 de fevereiro, o governo tomou sua primeira medida importante, ao decretar a proibição de entrada no país de estrangeiros que haviam visitado a China nos 14 dias anteriores. Segundo Trump, a decisão possibilitou salvar inúmeras vidas. Os especialistas concordam, mas ressalvam não vindo acompanhada por outras providências para preparar o país para a pandemia.

"Demorou muito tempo para as autoridades perceberem que esse era um problema sério", diz Jeremy Youde, especialista global em políticas de saúde e reitor da Escola de Humanidades da Universidade de Minnesota, em Duluth. "E o tempo jogou contra tudo o que os Estados Unidos fizeram", acrescenta ele.

Em 12 de março, o presidente fez um pronunciamento à nação no Salão Oval da Casa Branca, no qual anunciou que todas as viagens da Europa e até trocas comerciais haviam sido suspensas, informação que seu governo teve que corrigir às pressas: a medida era apenas para estrangeiros não residentes.

Além disso, as declarações de Trump durante a pandemia geraram confusão devido a seu hábito de minimizar o risco para o país e o fato de, em inúmeras ocasiões, contradizer as informações passadas por outros integrantes de sua equipe ou pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

Cronologia

Tamara Gil faz uma cronologia de comentários do presidente americano:

"Tudo está sob controle" - 22 de janeiro, um dia após o primeiro caso ter sido confirmado no Estado de Washington.

"Muitas pessoas pensam que desaparecerá em abril com o calor. À medida que o calor chegar. Desaparecerá em abril" - 10 de fevereiro, com 11 casos confirmados.

Os Estados Unidos estão "desenvolvendo rapidamente uma vacina " contra o coronavírus - 26 de fevereiro. Logo depois, o diretor do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas do governo, Anthony Fauci, reconheceu que um antígeno levará mais de um ano para ficar pronto.

"Abriremos [o país] em breve ... Gostaria que o país abrisse com energia para a Páscoa" - 25 de março, depois de anunciar as regras de confinamento a todos os americanos.

Já estaremos "no caminho da recuperação " entre 30 de junho e 30 de março, depois de estender a recomendação aos americanos até o fim de abril.

"Quando vemos esse tipo de inconsistência e (declarações) questionando autoridades ou a comunidade científica, é difícil para pessoas normais, como nós, saber quem devemos escutar", diz Youde. "Não sabemos o que devemos fazer. Devo ir ao supermercado ou não? Devo ir ver minha mãe idosa ou devo deixar essa visita para outra hora?".

Se no Brasil, o rosto do combate ao Covid-19 passou a ser o do ministro da Saúde, Dr Henrique Mandetta, depois que o coordenador das ações em São Paulo (principal foco no Brasil, em função, de sua maior população – 46 milhões e o maior tráfego aéreo nacional e internacional ), Dr David Uip saiu de cena, acamado pelo vírus, nos EUA, “um dos rostos mais conhecidos e confiáveis do público americano é o do Dr. Anthony Fauci, que em várias ocasiões corrigiu Trump em suas afirmações sobre o desafio sanitário ou as refutou”, lembra a jornalista.

Especialistas em saúde pública reconhecem o valor de Fauci como chefe da equipe encarregada em combater a epidemia, mas alertam para as mensagens truncadas dentro do governo. "É importante ter uma comunicação consistente e transmitir às pessoas a realidade e o que podemos enfrentar", destaca Youde.

Falha nos testes

Além da falta de liderança clara, uma das grandes falhas dos EUA nesta crise foi o "fracasso" em detectar novos casos no país.

"Grande parte da culpa pela situação se deve ao atraso dos testes nos Estados Unidos. Ficamos assistindo a pandemia se desenrolar sem capacidade de testar e identificar casos. E isso resultou na propagação maciça de covid-19 nos EUA", diz Thomas Tsai, cirurgião e pesquisador de políticas de saúde da Universidade Harvard (EUA).

Acesso limitado a testes ou mesmo testes defeituosos estão entre os problemas citados por especialistas, que atrasaram a resposta da primeira potência mundial ao avanço da doença.

Sistema federal

“Paralelamente aos problemas com os testes e ao gerenciamento da crise pela Casa Branca, vários governadores de Estados dos EUA começaram a tomar rédeas da situação. A Califórnia, segundo Tsai, de Harvard, "um bom exemplo em que esforços coordenados ajudaram a conter a propagação da infecção", foi um dos que adotaram medidas, como distanciamento social e fechamento de comércios não essenciais, em 19 de março.

Além disso, outra dificuldade é que os EUA não têm um balanço de infectados e mortos a nível nacional, apontam especialistas. Essa estatística é divulgada por cada Estado individualmente”.

Tamanho da população

Só para lembrar o que escrevi há duas semanas. O tamanho da população, em princípio, deve levar a mais contaminações e mortes se não forem adotados confinamentos prévios. A Índia, que tem apenas 50 milhões de pessoas a menos que os 1,4 bilhão de seres humanos da China, entrou em reclusão há dez dias e, por ora tem 120 mortos. Na Europa, depois de Itália e Espanha, a França já registra 8 mil mortes. A Alemanha surpreende, pois com 82 milhões de habitantes tem apenas 1.430 mortes, menos que as 1.640 da pequena Bélgica (10,4 milhões de habitantes) e as 1.30 da Holanda (17,1 milhões). A Rússia, com seus 148 milhões, é uma incógnita, mas Putin, ordenou para que os russos ficassem em casa.

Japão e México têm populações quase iguais (123,6 milhões no México e 127 milhões no Japão), mas, apesar de estarem condensados em pouco mais de seis mil ilhas, com 378 km2, contra uma área seis vezes maior dos mexicanos, os antigos hábitos de higiene dos japoneses, que há muito usam máscaras nos meios de transporte e nas ruas e tiram os sapatos ao entrar em casa, tendem a deixar menos vítimas. Na Ásia, as preocupações são com Indonésia (4ª população do mundo, com 260 milhões), Paquistão (207 milhões), Bangladesh (160 milhões), Filipinas (104 milhões, cujo presidente Duterte mandou fuzilar quem não respeitar o recolhimento) e Vietnã (96 milhões).

No Oriente Médio, as peregrinações anuais dos muçulmanos a Meca e Medina, tornam a Arábia Saudita (34 milhões de hab.), que já foi foco de propagação, em 2012, da MERS (versão anterior da SARS, de 2002, cuja última mutação é a Covid-19), uma fonte de preocupação. As autoridades sauditas fecharam as áreas das duas mesquitas sagradas. Egito (93 milhões), Etiópia (103 milhões), República Democrática do Congo (90 milhões) e Nigéria (200 milhões) são algumas das nações mais populosas e mais desassistidas da África.

Na América do Sul e Caribe, todos temem pela Venezuela e a Nicarágua, cujos ditadores, Nicolás Maduro e Daniel Ortega desdenha do vírus e ainda convocam manifestações pró governo. A tragédia do pequeno Equador (17 milhões de habitantes, um pouco menor que o Estado do Rio de Janeiro), mostra que todo o cuidado é pouco. Situação que o presidente Lenim Moreno desdenhou.

Como se vê, é duro viver em países em que o presidente não cré na Ciência. Ou ter um ministro da Deseducassão como Abraham Weintraub.