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Carros movimentam economia, a vida e a morte

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Saiu uma triste estatística do Instituto de Segurança Pública (ISS) do Rio de Janeiro. No RJ boa parte das mortes são causadas pelo trânsito, que mata mais jovens (motoqueiros ou motoristas pouco tarimbados na chamada direção defensiva) do que balas perdidas ou achadas. O mais surpreendente é que o número de atropelamentos (35% das mortes no trânsito), mais alto entre os idosos, é mais acentuado nas estradas do interior.

Vale recordar a imortal letra de “Tiro ao Álvaro”, feita em 1960 pelo genial Adoniran Barbosa (nome artístico de João Rubinato, falecido em 1982): “Teu olhar; mata mais; que atropelamento; de artomóver; mata mais; que bala de revólver...”. Para uma população mal saída do mundo rural, onde convivia com a velocidade dos carros de boi, charretes e bicicletas, era difícil naquela época calcular a velocidade dos automóveis ônibus e caminhões numa travessia de rua ou estrada...

Quase 50 anos depois, somos 210,4 milhões de habitantes, com quase 85% vivendo nas maiores cidades. Circulam no país quase 70 milhões de veículos, sendo uns 43 milhões de automóveis, 16 milhões de motocicletas, 2,3 milhões de caminhões, 400 mil ônibus e cerca de 7,5 milhões de veículos comerciais leves (cargas e vans). O RJ tem a terceira frota, após os quase 20 milhões de SP e os 8,5 milhões de Minas Gerais.

O mau estado das estradas do interior fluminense e a falta de educação para o trânsito, que faz uma pessoa atravessar uma estrada de alta velocidade próxima à passarela (quando existem), ajudam a explicar a catástrofe, que enluta as famílias e deixa sequelas para sempre nos sobreviventes e ampliam os atendimentos dos hospitais do SUS, sacrificando a rede pública de saúde.

Choque cultural e econômico

A implantação da indústria automobilística brasileira no governo JK, com a vinda maciça para o Brasil de matrizes desativadas dos fabricantes europeus que tiveram as linhas de montagem modernizadas na França e Alemanha nos anos 5º pelos investimentos do Plano Marshall (vencedores maiores da 2ª Guerra os americanos estavam sem parceiros no comércio), mudou a face da economia brasileira e contribuiu para a urbanização acelerada do país.

Duas décadas depois, – em situação apressada pela geada de 1975, que destruiu boa parte dos cafezais de São Paulo e Paraná – o Brasil já era um país urbano, com a cadeia de fornecedores da indústria automobilística liderando a produção, o consumo e a geração de emprego e renda no país. Por falta de capital e gaps na conquista do Centro-Oeste como fronteira agrícola, a ocupação territorial e a construção de ferrovias (ocorrida nos EUA no começo do século passado) atrasou mais de 100 anos no Brasil, dependente do carro e dos caminhões e ônibus para a movimentação de cargas para seus 210 milhões de habitantes.

A dependência do automóvel e do transporte por rodas - nas grandes regiões metropolitanas, entre os 5.568 municípios e entre as regiões produtoras e centros de consumo – deixa o país em suspenso sempre que há turbulências no mercado de petróleo, insumo do qual são extraídos os combustíveis que movem carros (com a alternativa do álcool e do GNV) caminhões, ônibus, trens e navios. Tirando os metrôs e algumas linhas eletrificadas para passageiros nas grandes metrópoles, as composições são movidas por locomotivas a diesel no Brasil. A Ferrovia do Aço, construída a partir de 1974 (depois da crise do petróleo), nunca foi eletrificada, como era a promessa do governo Geisel.

Já foi muito pior. Em 1973, quando estourou a 1ª crise do petróleo, o Brasil só produzia 15% do que consumia. Em agosto de 1974 foi descoberto o 1º poço da Bacia de Campos, mas a produção efetiva só começou no final dos anos 70 e o equilíbrio da balança do petróleo só veio a partir do fim dos anos 80. Em função da estrutura de transporte concentrada em veículos movidos a óleo diesel, o consumo deste combustível supera a média natural de refino do combustível para cada barril de petróleo.

A solução engendrada na metade dos anos 70 foi mais uma jabuticaba brasileira (não gosto muito desta expressão, porque contraria a botânica: a jabuticaba não é exclusividade do Brasil; ocorre em vários países da América do Sul e América Central até a Costa Rica). Desenvolvemos a produção de cana onde antes havia cafezais em SP. Criamos o motor movido a álcool hidratado. E misturamos álcool anidro à gasolina (percentual está em 27%).

Já a gasolina poupada em cada barril refinada foi misturada à parte mais leve do óleo combustível (com a eletrificação das caldeiras nos anos 70, hoje majoritariamente movidas a gás natural ou GLP industrial). Por isso, o diesel brasileiro é o único inflamável no mundo. A adição de biocombustíveis (óleo de soja, girassol, canola, palma e de gordura animal diminuiu o teor de enxofre do diesel made in Brazil, mas ele segue único.

Impacto externo menor

Diante da dependência ao diesel e ao petróleo, que ainda não acabou mesmo com os sucessivos recordes de produção do pré-sal, que se encaminha para responder por mais de 60% da produção nacional, o Brasil (assim como os Estados Unidos, que aumentaram a produção interna do shale gas) está menos vulnerável a crises como esta do atendado às refinarias da Arábia Saudita.

Diga-se, de passagem, que o maior exportador mundial, ao lado da Rússia, nunca foi grande fornecedor do Brasil. Ao longo dos anos 70, Iraque, Irã (que deixou de suprir a Petrobras após a guerra com o Iraque, no começo dos anos 80), Kuwait, Catar, Argélia, Líbia e Nigéria eram os fornecedores. Após a guerra do Iraque, a Arábia Saudita tomou seu lugar, situação invertida já no ano passado. Outros grandes fornecedores atuais são Nigéria e Angola.

Com a menor dependência do suprimento externo, o Brasil, ou melhor, a Petrobras, que está extraindo petróleo do pré-sal ao custo de US$ 6 por barril, bem que poderia segurar os preços. Não se espera disparada como no passado (os preços futuros, para entrega a 90 dias, do barril já recuaram dos US# 70 da semana passada para US$ 63 hoje). Mas acontece que a Petrobras sofre com outro fator de alta nos custos: a manutenção do dólar acima de R$ 4. Para uma empresa altamente endividada em dólar, a valorização futura das reservas do pré-sal ainda é um evento para acontecer. A dívida aumenta agora.

Privatização numa hora dessas?

E esse inesperado lance no tabuleiro do xadrez internacional se dá no momento em que a estatal avança na política de desinvestimento das duas refinarias do Sul (RS e PR) e das duas do Nordeste (PE e BA) e inicia a fase de convocação aos interessados em outras cinco refinarias menores. Só ficariam no portfolio as refinarias do RJ e São Paulo. Para os defensores do controle estatal absoluto, a crise na Arábia Saudita é um sólido argumento contra a privatização e a redução do controle estatal no mercado de óleo e gás.