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Trump e Trumpismo

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As recentes eleições de meio de mandato nos Estados Unidos indicaram uma vitória para os dois principais partidos, Democrata e Republicano, conferindo ao segundo a manutenção do controle do Senado, com aumento da bancada, e ao Partido Democrata a maioria na Câmara dos Deputados, com especial destaque ao predomínio de uma agenda em nível da representação distrital em que se destaca a vitória de candidatas mulheres e de representantes de minorias, bem como a eleição de candidatos negros, muçulmanos e latinos, além de representantes identificados com a ideologia de gênero.

Esses fatos revelaram que ainda há espaço, na sociedade norte-americana, para movimentos identificados com uma agenda de resistência às tentações de predomínio de maiorias raivosas e excludentes, cujo discurso foi vitorioso com a eleição de Donald Trump em 2016.

Ao longo dos últimos meses, dezenas de livros e artigos de diversas naturezas e campos de conhecimento foram produzidos e publicados, tendo como objeto o estudo do fenômeno Trump, uma tentativa de explicar a vitória de um candidato tão pouco afeto à linguagem e à liturgia tradicional e uma forma própria de fazer e conduzir a política, seja no segmento doméstico, seja nas relações internacionais.

A primeira constatação que obtemos depois da leitura de algumas dessas obras indica que parte da explicação pode ser encontrada no que seriam as próprias falhas da administração de Barack Obama. A princípio um sentimento profundo de abandono e de perda de prestígio internacional tomou conta de uma ampla parcela do eleitorado mais conservador de estados chaves da federação, brancos, velhos e jovens com pouco instrução e com alto fervor cívico, e, claro, pendor nacionalista, tendo por vítimas soldados abandonados em campo de batalha, seres deixados de lado e largados pelo que entendem como o fenômeno da globalização.

Para esse grupo, a internacionalização em grande escala da produção e o fim das barreiras à movimentação de pessoas (imigrantes) e do capital foram os fatores responsáveis por uma perda na qualidade de vida dos norte-americanos em razão do espírito de leniência adotado pelo antigo governo, no que diz respeito a contenção do fluxo de imigrantes, latinos em especial, e da fragilidade de seus negociadores nas questões relacionadas com acordos comerciais com outras nações. Contudo, a administração Barack Obama, foi responsável pela “devolução” de quase um milhão de imigrantes ilegais ao longo dos oito anos de mandato.

Segundo os eleitores de Trump, o mundo teria utilizado artimanhas e táticas fraudulentas nas relações com os Estados Unidos (em especial a China, Irã e Comunidade Europeia ), com o objetivo único de levar vantagens indevidas naquilo que entendem como um imperativo manifesto da superioridade norte-americana.

Em um parágrafo podemos definir o cerne dessa orientação.

Nações tidas como aliadas usaram a boa fé do povo e a incompetência das administrações democratas para impor aos Estados Unidos um conjunto de armadilhas que minaram a percepção do povo norte-americano quanto à forma de ver o mundo.

Uma agenda esquerdista e liberal foi utilizada para minar o espírito do americano, daí a mensagem no sentido de que “vamos fazer a América Grande, novamente”, lema este inventado e utilizado usado por Charles Lindbergh, personagem importante da posição isolacionista no período anterior à eclosão da Segunda Guerra Mundial, famoso por suas proezas como aviador e fã declarado do nazismo. Condecorado pelo Reich, por sua identidade com o regime e seus feitos na aviação. Uma espécie de herói do movimento que expressa a tese da supremacia branca.

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Medo

Em uma única palavra, o que move o eleitor de Trump é a sensação de insegurança, vazio e perda de importância contida na desconstrução de um mundo em que todos faziam reverências ao poder e à força de uma América Grande! Até mesmo a chamada Guerra Fria teria sido um período de relativo sucesso para a imagem dos Estados Unidos, pois a América saiu vitoriosa e, ao término do Império Soviético, assumiu a liderança inconteste do chamado mundo livre.

Pela análise acima descrita, é muito difícil atribuir ao fenômeno do Trumpismo características de um modelo de formação de pensamento político exportável para outros países ou passível de ser reproduzido em escala. O único elemento exportável do processo não está relacionado ao modus operandi da ação política, e sim à forma de ação eleitoral, com o uso intenso de perfis falsos nas redes sociais e de uma campanha maciça de desconstrução dos adversários, entendidos como combatentes inimigos, daí a justificativa para transformar a eleição em um campo de batalha, tendo como proposta a aniquilação dos concorrentes e a exploração do ataque às frentes de apoio e à linha de comando dos opositores.

Para uma análise cativante e frenética do que é a administração Trump, da forma de conduzir as pautas e do relacionamento com seus secretários, recomendamos uma obra que acaba de ser lançada em língua portuguesa, aqui no Brasil. Trata-se do livro editado pela Todavia, em novembro de 2018, intitulado “Medo: Trump na Casa Branca”, de autoria do veterano repórter do Washington Post,Bob Woodward.

O livro, que vendeu um milhão de exemplares em sua primeira semana de estreia, nos Estados Unidos, apresenta um presidente movido a inspirações desfocadas da realidade, dono de uma enorme vaidade associada com uma santa ignorância e a ausência quase que total de conhecimento dos aspectos mais tênues da realidade.

Trump é relatado como um golpista que sempre levou seus negócios em uma trama de imprudência e oportunismos, com quase nenhuma credibilidade no sistema bancário, justamente por sua propensão a não pagar empréstimos e financiamentos. Da mesma forma que aponta para a possibilidade do uso por membros da equipe de Trump de formas heterodoxas de financiamento da campanha vitoriosa, e revela o uso de campanhas difamatórias contra seus oponentes, leitmotiv, da campanha vitoriosa de 2016.

Trump encarna um personagem que mistura características de um mitômano compulsivo, como um ardiloso e implacável protagonista de uma trama macabra inspirada no Príncipe, de Nicolo Maquiavel. Bob Woodward explora no título de seu livro uma frase de autoria do personagem, quando indagado, sobre o que é o poder. Trump responde de forma fria e direta que seria a capacidade de impor e gerar o MEDO!

A obra retrata, com requintes de crueldade, o dia a dia da gestão Trump, as formas heterodoxas de seleção de auxiliares, os períodos de demência e senilidade, a ausência de compromisso com a verdade e uma forma de agir movida por inspirações carentes de reflexão, tendo como objetivo declarado reduzir o relacionamento entre a administração e o mundo, a embates direcionados com rompantes e estratégias destrutivas, mediante o uso de táticas de barganha e blefes voltados à conquista de vantagens negociais com a ajuda de ameaças e a ausência de compromissos com aliados tradicionais, tidos como aproveitadores da boa-fé norte americana

Da leitura atenta do livro, emerge um mundo de caos e de comportamento idiossincrático. Ao término das 397 páginas, fica a impressão de um relato ficcional, quase uma tragédia, dada a impossibilidade de acreditar que todo esse relato possa corresponder a uma realidade objetiva, e que seja a expressão de uma crônica da rotina do governo da nação mais poderosa do planeta.