
O OUTRO LADO DA MOEDA
Democracia une o país contra a barbárie
Publicado em 10/01/2023 às 14:33

Como esta é uma coluna basicamente de economia, tinha me preparado para escrever 2ª feira sobre o paradoxo de o governo Bolsonaro, ao derrubar artificialmente a inflação, com a redução de impostos na gasolina, ter ficado com o IPCA de 2022 (que o IBGE divulgou hoje, 3ª feira, em 5,79%) abaixo até da inflação de grandes economias, mas, na contramão, exibir os juros reais (descontada a inflação) de 7,52%, dos mais elevados da história e deixar o Banco Central sob dilema, ante a ameaça de repique de preços administrados.
E os juros nominais da dívida pública mais do que dobraram frente a 2021 - os dados do BC até novembro apontam gasto de R$ 527,4 bilhões; como em novembro o gasto foi de R$ 50,2 bilhões e em setembro ficou em R$ 71,3 bilhões, pode-se estimar gasto final em 2022 de R$ 600 bilhões. O aumento dos gastos ano passado (R$ 312 bilhões), supera, portanto, em mais de 115% a todo o espaço de aumento dos gastos fiscais programado pelo governo Lula para a área social (R$ 145 bilhões), além dos R$ 23 bilhões de receitas não vinculadas a gastos discricionários, que poderão ter liberdade para o gasto.
E a conjuntura de juros reais elevados – dada a projeção do mercado financeiro na Pesquisa Focus – divulgada ontem pelo Banco Central, aponta juros reais ainda elevados em 2023: com IPCA de 5,36% a 5,48% (nas respostas dos últimos cinco dias úteis) para a Selic fechando o ano em 12,38% (mediana acima dos 12,25% da semana anterior), tem-se juro real de 6,5% em 2023; e em 2024 (com expectativa de IPCA de 3,70%, para a Selic elevada de 9% para 9,25%) teríamos juros reais de 5,35%. Assim, será difícil estimular o investimento privado com ganho tão altos nas aplicações de renda fixa. Salvo se o governo mudar a tributação das aplicações financeiras e nos dividendos.
Como reagir à barbárie?
Mas a situação política, com a agressão dos radicais bolsonaristas aos pilares da democracia brasileira – o Congresso, o Palácio do Planalto e a sede do Supremo Tribunal Federal – pede uma reflexão bem mais ampla. A democracia resistiu à barbárie. Mas é preciso isso nova atitude das forças democráticas, semelhante à atitude de tolerância zero dos Estados Unidos contra o terror da Al-Qaeda, de Osama Bin Laden, que coordenou os ataques de aviões sequestrados às duas torres do World Trade Center, em Nova Iorque, e ainda ao Pentágono, enquanto outro avião caiu ao solo sem atingir qualquer alvo.
O maior atentado ao território dos EUA começou com a colisão de dois aviões da American Airlines, que saíram de Boston com destino a Los Angeles, na costa Oeste e foram sequestrados em voo por terroristas da Al-Qaeda, de Osama Bin Laden, que se abrigara com seu grupo nas colinas do Afeganistão, controladas pelo Taliban e arremessados, com os tanques cheios de combustível, o 1º, às 8:46 contra uma das torres do World Trade Center, o maior prédio de Nova Iorque. Enquanto as imagens de TV mostravam o incêndio no alto de uma das torres e o noticiário falava em choque de um pequeno avião (situação incompatível com o dano gigantesco ao prédio, que veio a ruir com o irmão gêmeo), as imagens da TV exibiram um 2º avião da AA sendo arremessado contra a 2ª torre, com pouco mais de 15 minutos de diferença e a ficha caiu, às 9:03. Havia um ataque terrorista a Nova Iorque.
A empreitada suicida da Al Qaeda era mais ampla: às 9:37, passados pouco mais de meia-hora do horror no símbolo do capitalismo americano, o 3º avião da American Airlines era jogado contra uma das alas do Pentágono, o complexo da defesa dos EUA. O 4º avião, da United, possivelmente seria jogado contra a Casa Branca ou o edifício do Capitólio, em Washington, mas a reação de um grupo de passageiros, que lutou contra os sequestradores, fez a aeronave cair numa área rural de Shanksville, na Pensilvânia. Morreram todos.
Nos anos seguintes os governos do republicano George W. Bush, que presidia o país durante os ataques e ficou catatônico numa escola se crianças ao receber a notícia, e depois perseguiu Osama e seu bando, invadindo o Iraque e o Afeganistão, e do democrata Barack Obama, que deu cabo de Bin Laden, na fronteira com o Paquistão, empreenderam caça implacável ao terror.
Mas o germe do terrorismo político grassou no próprio território americano quando o presidente Donald Trump, dos republicanos, instou seus celerados apoiadores a invadir o Capitólio em 6 de janeiro, quando o vice, Mike Pence, presidia a cerimônia de diplomação do presidente eleito, Joe Biden, e a vice, Kamala Harris. Foi o mais infame atentado à democracia americana.
Radicais fizeram pior no Brasil
Pois os radicais bolsonaristas fizeram neste domingo, 8 de janeiro, a partir das 15 horas, um ataque triplo aos pilares da democracia brasileira, que juntou o atentado de Bin Laden e a infame afronta de Trump e seus acólitos à democracia que é exemplo para o mundo: com a irresponsável cumplicidade e/ou leniência do governo do Distrito Federal, uma turba vinda de ônibus de vários pontos do país que engrossou o contingente dos acampados desde novembro às portas do QG do Exército em Brasília, invadiu e depredou as sedes dos três Poderes da República Federativa do Brasil.
O Congresso Nacional, o Palácio do Planalto (sede do Executivo) e o prédio do Supremo Tribunal Federal, foram atacados por vândalos, terroristas inconformados com o resultado das eleições de 2022 e a posse do governo Lula. Os prédios, concebidos por Oscar Niemeyer, e símbolos da democracia brasileira, foram atacados e depredados, até a intervenção das forças de segurança do Distrito Federal, que demoraram a agir porque Anderson Torres (secretário de Segurança Pública do DF, e ex-ministro da Justiça do governo Bolsonaro) se ausentara do país, viajando justamente para Orlando, onde estava o ex-presidente Jair Bolsonaro desde 30 de dezembro, o que gerou ausência de comando e falta de coordenação nas forças de segurança.
Só a partir das 18 horas, tropas da Guarda Nacional e da PM do DF começaram a reagir e a prender os invasores, por determinação do ministro do STF, Alexandre de Moraes. O presidente Lula, que estava em Araraquara (SP), vistoriando os estragos das chuvas na cidade do interior paulista, determinou, de pronto, a intervenção federal na Secretaria de Segurança do DF (justamente a que mais recebe recursos federais por lhe caber a tarefa de zelar pela segurança dos imóveis e das atividades dos três Poderes).
Diante da suspeita de leniência do GDF, Moraes determinou o afastamento, por 90 dias, do governador reeleito Ibaneis Rocha (MDB-DF). Parece clara a falha coletiva na segurança da República em Brasília, que precisa ser urgentemente reconstruída e repensada. Ato contínuo, o presidente Lula partiu de São Paulo para Brasília, onde se reuniu, no fim da noite, com os presidentes do STF, ministra Rosa Weber, e interino do Congresso, senador Vital do Rego.
Pacto pela Democracia
E uma inédita reunião conjunta, no Palácio do Planalto, com os chefes dos três poderes e os governadores e vices das 27 unidades federativas do país, das mais diversas tendências políticas, selou o pacto nacional pela defesa dos princípios democráticos, vale dizer, da Constituição de1988. Vale dizer que estiveram presentes governadores claramente alinhados com o ex-presidente Jair Bolsonaro, como Romeu Zema (MG). Jorginho Melo (SC) e Tarcísio de Freitas (SP), um dos convidados a se manifestar, pregou a pacificação. Todos foram unânimes em cerrar fileiras pela democracia e louvaram o entendimento.
Lula aproveitou para convidar todos a nova reunião, dia 27 de janeiro, para discutir o Pacto Federativo – sua intenção inicial para debater com os governadores, antes da emergência política-institucional. Na ocasião, para demonstrar sua propensão ao diálogo, independente da corrente política do governante, instou que cada chefe de executivo listasse três importantes projetos a serem desenvolvidos em parceria com o governo federal.
Já nesta 3ª feira, o governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, eleito pelo PL, o partido pelo qual Bolsonaro se candidatou à reeleição, estendeu a estadia em Brasília para negociar acordos com o governo federal, Além de questões de segurança (houve ameaça de invasão e bloqueio à refinaria da Petrobras em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, a renegociação da Recuperação Fiscal do RJ não tinha sido fechada com o governo Bolsonaro.
O que falta fazer
Com a emergência, os presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que estava em sua fazenda, veio a Brasília e, assim como o presidente do Senado (e do Congresso), Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que estava fora do país e retornou hoje a Brasília, convocaram os deputados e senadores e interromper o recesso para decidir sobre a intervenção na segurança do DF e o afastamento do governador, bem como outras medidas para reforçar o pacto democrático.
Parece evidente que a reação internacional de apoio ao Brasil, ajudará a consolidação democrática e a isolar os radicais inconformados, despreparados para viver sob a democracia. Mas a realidade da união momentânea acaba justamente no fim deste mês, coincidente com o prazo da intervenção federal na Segurança Pública do DF. Até lá tem de ser reorganizado o esquema de segurança da capital da República.
Não basta uma limpa no efetivo da PM, que mostrou oficiais e praças conviventes com os invasores, aos quais “abriram caminho para desfilar na Praça dos Três Poderes, etapa inicial para o verdadeiro “putsch” fracassado de tomada do país. Depois do 11 de setembro de 2001, ficou bem restrita a circulação de trânsito no entorno da Casa Branca e do Capitólio, o que facilitou o deslocamento das tropas federais para proteger o Executivo e o Legislativo de ataques infames. Chegou a hora de se repensar o livre acesso à Praça dos Três Poderes, que deve ser precedido por um cordão de segurança como havia no regime militar. Pelo menos, até que dure os 90 dias de afastamento do governador Ibaneis Rocha.
Em 1º de fevereiro toma posse uma nova Câmara e um novo Senado, com composição mais robusta na tendência da direita. E além da eleição das novas mesas diretoras (Lira e Pacheco são candidatos à reeleição, mas pode haver concorrência à esquerda na Câmara e à direita no Senado), o governo Lula precisa reagrupar o apoio político para não ser obstado nos grandes projetos de reforma do país, a começar pela reforma tributária para corrigir a iniquidade fiscal, que penaliza proporcionalmente mais a renda da maioria mais pobres do que a da minoria dos mais ricos, detentoras de maior fatia do PIB.
Investigações aos instigadores
Nos Estados Unidos, as investigações sobre o atentado ao Capitólio já indiciaram quase mil pessoas, um pouco menos de 50% do total de detidos em Brasília. Os acampamentos diante dos quarteis, tolerados e insuflados na surdina pelo ex-presidente e seus apoiadores, que parecem ter culpa no cartório tanto pela baderna do dia 12, quando Lula e Alkmin foram diplomados, quando no frustrado atentado contra um caminhão tanque de querosene de aviação no Aeroporto de Brasília.
As investigações precisam ir fundo para identificar, com as pistas deixadas nas redes sociais, os verdadeiros financiadores das empreitadas golpistas. Os militares nunca esquecem de mencionar a “Intentona Comunista” de 1935, quando militares de esquerda atacaram colegas de farda na Praia Vermelha (Rio de Janeiro). Pois agora houve uma “Intentona direitista antidemocrática” que foi condenada até pela 1ª ministra da Itália, Geórgia Meloni, que é fascista.
O ex-presidente Jair Bolsonaro, que fugiu da cena do crime em 29 de dezembro, quando embarcou num avião da Força Aérea Brasileira para uma temporada de auto-exílio em Orlando (EUA), visando evitar o compromisso de transferência da faixa presidencial a Lula – num sinal claro de resistência a seus fanáticos apoiadores – tem plena responsabilidade política pelos fatos. Quem sabe seu “status” diplomático duvidoso nos Estados Unidos não o faça prestar contas à Justiça antes do que ele imaginava?