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A mistura certa de Pedro Paulo

Vanessa Eyer/Divulgação -
O experiente Pedro Paulo Machado afirma que só existe música boa ou ruim
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As três horas de entrevista com o empresário Pedro Paulo Machado duraram mais que um set do antológico Mistura Fina, casa de shows que ele fundou nos anos 1980, na Zona Sul do Rio de Janeiro. Na companhia do especialista em projetos culturais (e frequentador assíduo do Mistura) Armando Lisboa, a conversa aconteceu numa casa no Jardim Botânico, a poucos metros de onde o clube funcionou até 2007. Apesar da tristeza com o fechamento do local, Pedro, que acaba de completar 75 anos - e atua como curador em alguns projetos pelo país - prefere se apegar às boas memórias, como a de Elza Soares, que morou no imóvel com o craque Mané Garrincha, afirmando que estava “cantando em casa”, ou da amizade que mantém até hoje com grandes músicos nacionais e internacionais, como Ron Carter e Erasmo Carlos. Com sua fala mansa, Pedro também contou de maneira emocionada sobre a amizade com o “amigo-irmão” Márcio Montarroyos, mencionou a tristeza com o atual cenário político, e despistou sobre um possível livro sobre suas memórias. Certeza mesmo só quando perguntado sobre o tipo de música que tocaria numa possível nova casa de shows: “Aprendi que existem gêneros e tipos, mas música ou é boa ou é ruim. E, na minha casa, só pode tocar música boa”.

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O experiente Pedro Paulo Machado afirma que só existe música boa ou ruim (Foto: Vanessa Eyer/Divulgação)

JORNAL DO BRASIL: Como foi o início da sua trajetória no mundo da música e do entretenimento?

Pedro Paulo: Eu tinha um escritório de arquitetura de dois andares na Lagoa, em 1975, e fazia muitos projetos, principalmente em hotéis, na época do boom da hotelaria. Depois, veio uma forte crise, e as construções pararam. Fiquei na dúvida sobre o que fazer com aquele espaço e, após algumas ideias que não avançaram, decidimos abrir um bar no primeiro andar. Tive uma reunião com o Celso Rubinstein e, rapidamente, o bar virou um point entre artistas, arquitetos e profissionais da arte. Após a morte do proprietário do imóvel, os filhos não quiseram renovar o contrato, e mudamos para uma casa de dois andares em Ipanema, na Garcia D’Ávila, 15.

Foi aí que o Mistura Fina ganhou seu primeiro palco?

Ao chegarmos em Ipanema, em 1982, eu fiz uma reforma no primeiro andar, mas ninguém subia para o segundo. Eu era muito amigo do Márcio Montarroyos e um dia liguei para ele e perguntei: “Vamos fazer um clube de jazz?”, e ele nem titubeou. Eu banquei a reforma e ele assumiu a parte musical. Nascia ali nosso primeiro palco.

Quando tempo durou essa passagem do Mistura por Ipanema?

Ficamos nesse imóvel durante dez anos, até 1992. Lá, tive oportunidade de fazer os primeiros shows de Cássia Eller, Zelia Duncan, Renata Arruda, Adriana Calcanhoto, além de temporadas com Luizinho Eça, Mauro Senise, Nana Caymmi, Rosa Maria e tantos outros. Era o point dos músicos, todos eles tinham descontos, eram membros honorários, se sentiam definitivamente em casa. Foi uma época maravilhosa, com diversos espaços na cidade, e uma riqueza musical incrível.

Após o sucesso em Ipanema, você expandiu para novos espaços?

Fiz a Danceteria Mistura Fina, em 1983, no Itanhangá Center, na Barra. Foi uma época em que as pessoas gostavam de sair para dançar e o Rio não tinha uma danceteria. Convidei o Erasmo Carlos, que era amigo desde a época em que fiz o projeto de arquitetura da casa dele, para a abertura do espaço. No dia da inauguração, a esposa dele teve um problema sério de saúde, e eu já estava ligando para todos os convidados avisando que adiaríamos a abertura, quando o filho dele me avisou que o Erasmo faria o show. Foi emocionante. Lá tocaram também Legião Urbana, Ultraje a Rigor, Lobão...

Em 1992, você volta para a Lagoa, para o mais emblemático endereço do Mistura. É verdade que foi a casa onde Elza e Garrincha moraram?

Exato. Fizemos, inclusive, alguns shows da Elza, e foi arrepiante quando ela chegou pela primeira vez e gritou: “Estou fazendo show na minha casa, vou cantar no meu quarto!”. Foram 15 anos lá. Saímos por divergências com o proprietário, não foi uma questão econômica.

Foram os anos dourados da música instrumental na nossa cidade?

Era uma época ótima, fazíamos temporadas, artistas se apresentavam de terça a sábado. O Nico Assumpção foi quem me incentivou a fazer essa historia de duas sessões, ainda em Ipanema, com a primeira sempre para não fumantes. As secretarias de cultura e educação ainda pagavam para realizarmos os shows gratuitos do Mistura em locais ao ar livre, como o Arpoador.

Após o final do Mistura Fina em 2007, você seguiu no mundo da música?

De 2005 a 2010, ainda tive o Estrela da Lapa, mas a Lapa caiu muito, junto com a nossa cidade, e o modelo de negócio não ficou viável. Passei o ponto e tenho feito projetos musicais por todo o Brasil, para eventos, festivais e até casamentos. Mantive um excelente relacionamento com grande parte dos artistas que se apresentaram no Mistura, entre eles Ron Carter, Roberta Gambarini, Roy Hargrove, Dionne Warwick, John Pizzarelli, além, claro, de toda a turma nacional, com Leny Andrade, Wagner Tiso, Ivan Lins e Arthur Maia.

Ainda sente vontade de novamente ser dono de um clube de jazz?

Teria que ser um clube muito legal, onde eu pudesse fazer as coisas do meu jeito, com boa música. Aprendi com o Montarroyos que, acima do gênero e do tipo de música, existe o que é bom e o que é ruim. E no meu clube, só pode tocar musica boa.

É possível citar alguns dos shows inesquecíveis que o Mistura recebeu?

PP: Difícil citar sem cometer injustiças, mas vou tentar: Ron Carter, Michel Legrand, John Pizzarelli, Kenny Barron, Roberta Gambarini, Lucho Gatica Trio da Paz, Edu Lobo, Claudete Soares, e claro, meu amigo-irmão Márcio Montarroyos.

Conte um pouco sobre essa sua relação especial com o Márcio.

Fica difícil falar. Éramos muito amigos, ele era muito generoso, fomos sócios e criamos uma afinidade de irmãos. No show que fizemos para arrecadar fundos para ajudá-lo na época em que ele ficou doente, todos os grandes artistas participaram e contribuíram. Ele era muito especial.

Essa relação com o Márcio e com os músicos foi o pilar principal para o sucesso dos seus negócios?

Sem dúvida. Esse é um mercado muito pequeno, e a confiança é a grande moeda. Já fiz turnês e temporadas com grandes artistas sem contrato, apenas na confiança da palavra.

Como fica a cena musical diante do atual cenário político?

Muito difícil. Uma falta de opção, com radicalismo... Temos nossa parcela de culpa porque deixamos a situação vir se alimentando, com políticos que não se preocupam em apresentar soluções e propostas, apenas ofensas. Nossa cultura não merece isso. Mas eu não desisto.

Quando vamos ter um livro de memórias com essas e tantas outras histórias maravilhosas da sua vida?

Nem todas podem ser publicadas (risos). Não penso num livro, mas quem sabe um dia sentamos, abrimos um bom vinho ou um uísque e falamos sobre isso?