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Mangueira voa alto no carnaval e reescreve a história do Brasil

Oscar Liberal -
Hilde
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Quem ouve o samba-enredo da Mangueira deste carnaval se emociona. Ele não podia ser mais bonito: no tema escolhido, na melodia e na letra. Um enredo que fala fundo aos corações e sacode a névoa que distorce a história real de nosso povo, revelando quem são nossos mais legítimos e combativos Heróis. Leandro Vieira, o jovem e talentoso carnavalesco da escola, faz o seu voo mais ousado, reescrevendo, através do samba, a História do Brasil, e colocando tudo e todos em seus devidos lugares. Leia abaixo a entrevista dada por Leandro, no barracão da escola, ao repórter JOÃO FRANCISCO WERNECK.

Certas responsabilidades não são fáceis. Ser o mais novo carnavalesco da Sapucaí não é tarefa para um qualquer. Maturidade para aguentar as críticas, talento, criatividade e amor pelo ofício são fundamentais para suportar a pressão por promover o maior e mais concorrido show da terra. Assim é o desafio enfrentado por Leandro Vieira, 32 anos, o senhor da última palavra nos desfiles da Mangueira desde 2016, das mais tradicionais escolas de samba do país.

Macaque in the trees
Hilde (Foto: Oscar Liberal)

Quando chegamos ao barracão, na Cidade do Samba, encontramos um tranquilo carnavalesco, apesar de estar a menos de um mês do grande desfile. Com a calma de um monge tibetano, caminhou entre alguns dos carros alegóricos da Mangueira, até a sua sala, Leandro parou para ajustar detalhes, fazer recomendações ou incentivar a sua equipe. Nada de gritarias ou confusão. É visível a liderança deste carioca do Jardim América ante os componentes da Escola, que se preparam para levar à Sapucaí a história não contada dos muitos heróis brasileiros.

Nessa entrevista, o carnavalesco revela não apenas os detalhes do desfile, que promete ser esplendoroso, como também de toda a sua trajetória profissional, das dificuldades, felicidades e da polêmica prisão do ex-presidente da verde e rosa, Chiquinho da Mangueira.

Quando começou a se interessar pelo Carnaval?

Com o carnaval de rua do subúrbio, os bate-bolas e, mais à frente, com meu gosto pelo samba: as feijoadas, as rodas, o universo das Escolas e a intimidade das quadras. Foi isso que me levou a ser ritmista na bateria da Portela por 10 anos. Meu interesse pelo carnaval vem de onde o samba é feito, de dentro das quadras.

Seu ingresso na EBA (Escola de Belas Artes), na UFRJ, teve alguma relação com a decisão de ser carnavalesco?

Eu sempre quis participar dos desfiles como folião, mas nunca havia pensado em ser carnavalesco. A EBA era a minha opção inicial para seguir a carreira de artes. Pensei em ser artista plástico, mas fazer arte no Brasil não é fácil. Acontece que a história do samba tem uma intimidade com a Escola de Belas Artes. Há uma tradição, devido a Fernando Pamplona, Rosa Magalhães, Maria Augusta Como eu desenhava e pintava - sou formado em pintura - fui me oferecer para trabalhar nas Escolas de Samba. O primeiro barracão em que fui foi o da Mangueira, que não dava oportunidades para inexperientes. O seguinte, ao lado, era o da Grande Rio. Fui contratado, e o responsável pelo Carnaval era "apenas" o João Trinta.

O que há para lembrar deste Carnaval?

Eu achei tudo muito ruim. Eu ainda não fazia criação, mas fazia reprodução, algo simplesmente manual. Foi o meu primeiro contato com a figura do carnavalesco. E o João era uma figura grosseira. Aquilo me deixou assustado.

E como você passou a integrar uma equipe de criação?

Eu precisava de dinheiro, de trabalho, e conhecia o mestre da bateria da Portela, Nilo Sérgio. Então, entreguei a ele alguns desenhos. Cahê Rodrigues, o carnavalesco da Portela, gostou do meu trabalho, e me chamou. Foi a primeira vez em que eu fiz parte de uma equipe de criação de carnaval. No ano seguinte, a gente saiu da Portela, e foi pra Grande Rio. Foi ali que eu aprendi tudo o que eu sei hoje. Foi uma relação de trabalho que durou nove anos. Uma verdadeira formação. Sou formado artista pela EBA, mas carnavalesco pelos bastidores dos desfiles.

E a aproximação com a Mangueira, como aconteceu?

Era unânime o consenso de que eu levaria a escola ao fracasso. A ideia de um carnavalesco jovem demais, aos 29 anos, e inexperiente... Pato novo não dá mergulho fundo E a Mangueira estava numa situação muito ruim, quando o Chiquinho me convidou. Recebi aquilo com muita surpresa, e acho que eu fui um louco de aceitar aquele convite. Foram meses tomando "porrada", mas fiz uma Mangueira que ninguém esperava. Abri mão do verde-rosa, passei a utilizar fantasias distantes do conceito da escola, utilizei a nudez na comissão de frente E nós fomos campeões. Ser campeão em meio a tanto prejulgamento é uma grande satisfação. Mais do que parabéns, eu recebia pedidos de desculpas

Foi o desfile em homenagem à cantora Maria Bethânia. Como foi isso?

Foi especialíssimo A Mangueira estava uma situação muito ruim, havia amargado um nono lugar no último carnaval, e estava há alguns anos fora do desfile das campeãs. E a ideia de contratar um João Ninguém...

No ano passado, você desenvolveu um enredo crítico, questionando o corte de verba promovido pela Prefeitura do Rio de Janeiro. A Mangueira receou alguma represália?

Na verdade, o problema não é o corte, é o aspecto cultural. O problema é a narrativa dele (do prefeito), em que o carnaval é o vilão. Isso é extremamente conservador e com uma carga religiosa profunda. O carnaval como profano é uma ideia extinta. Somos reconhecidos por promover a mais bela festa cultural do país. O Crivella traduz uma visão racista e preconceituosa do carnaval, da festa, da bunda de fora Nosso desfile em 2018 falou sobre diversidade, a pluralidade da rua, a religiosidade, enfim. Os meus carnavais, de alguma forma, eu busco dar a eles uma narrativa contínua. A perseguição religiosa eu tratei em 2017. Perseguição aos orixás. Hoje, o que mais causa medo é a liberdade. Liberdade para falar, comportar, fazer, agir. O carnaval é uma ameaça para essas pessoas.

Falando nesta liberdade, este ano a Escola reconta a História do Brasil. Como foi feito esse recorte?

Desde 2016, o meu interesse é olhar para o Brasil. E eu tenho essa atitude de combate contra o conservadorismo. O cenário conservador no Brasil, ainda mais em 2019, me aponta para o entendimento de que é preciso passar a limpo a História do Brasil, olhando para o que não foi consagrado pelos livros. Nossa intenção não é contar 500 anos de História, mas falar sobre grupos que ficaram à margem dela. Esses grupos são: negros, índios e pobres. Nós vamos dar protagonismo aos excluídos. Vamos falar de índios, do massacre dos bandeirantes, dos grandes nomes quilombolas. É a negação deste protagonismo que nos faz uma sociedade "ninada". Por isso, eu batizo o enredo da Mangueira como "história para ninar gente grande".

E a vereadora Marielle Franco, como será a homenagem?

Iremos falar de representatividade. Eu falo por uma escola eminentemente pobre e negra. A escola tem que tomar conhecimento da história de homens e mulheres negras pobres. A Marielle é representatividade. Estamos falando de uma mulher negra, moradora da Maré, que até os 18 anos foi camelô. Depois ela fez faculdade e mestrado. Ainda é preciso dizer para os negros do Brasil que eles podem ir a qualquer lugar.

E a presença de Hildegard Angel?

O enredo passa por essas páginas da História do Brasil. Uma sociedade que não conhece o seu passado está fadada a cometer os mesmos erros. É por isso que há tantos brasileiros saudosos da ditadura. Essas pessoas não têm o entendimento da História, porque a nossa foi mal contada. A anistia ampla e irrestrita não puniu ninguém. A falta de esclarecimento faz com que, diferente de outros países da América Latina, o Brasil não tenha o entendimento do que foi a ditadura militar. Nosso samba exalta "quem foi de aço nos anos de chumbo", com o entendimento de que esse período foi o auge da repressão. É neste contexto que faço questão de relembrar as lutas de pessoas que foram opositoras a esse regime. É neste contexto que entram as figuras do Stuart e da Zuzu, assim com a Hilde, que significa a preservação da memória de uma luta e de mortes ainda não esclarecidas.

Quando você faz um carnaval, qual é o seu maior objetivo? Prêmios, título da Liesa, Estandarte de Ouro?

Para mim, só vale a pena se o carnaval dialoga com a comunidade. É possível ganhar perdendo. Eu tenho orgulho daquilo que proponho.

Com a prisão de Chiquinho da Mangueira, o desfile foi afetado de alguma forma?

Hoje, ele é ex-presidente. Ficamos um período sem comando. Mas o estatuto da escola foi respeitado, e nós seguimos tocando o projeto. O presidente hoje é o Aramis Santos, um cara que participa bastante. Mas o Chiquinho deixou um legado importante: a autonomia do carnavalesco. E a minha foi preservada.

CONTRARIADO COM a enxurrada de críticas à festa dos 50 anos de sua mulher, Donata, Nizan Guanaes cancelou o brunch de ontem, que encerraria o festival de três dias #Donata50. O local também seria polêmico: um terreiro de candomblé.