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As cabeças cortadas do cinema brasileiro: entrevista com Murilo Rosa

Divulgação -
Murilo Rosa, em cena do filme "A cabeça de Gumercindo Saraiva"
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Numa analogia com o Brasil de hoje, dividido, falamos aqui semana passada da Revolução Federalista do Rio Grande do Sul, marcada pelos embates de gaúchos contra gaúchos, isto é, Chimango x Maragatos. Estreou sexta-feira passada e está em cartaz nos cinemas nacionais o filme “A cabeça de Gumercindo Saraiva”, de Tabajara Ruas, que conta a história dessa “Revolução”, também chamada de Revolta da Degola, tal foi a quantidade de degolados, 10 mil. Na trama, o major Ramiro, vivido por Murilo Rosa, tem como missão levar a cabeça degolada de Gumercindo até Porto Alegre, onde seria exibida como troféu de guerra pelos Chimangos. Do outro lado, o capitão rebelde Francisco Saraiva, filho de Gumercindo, interpretado por Leonardo Machado, tenta resgatar a cabeça do pai a qualquer custo. Em um Brasil marcado pela dicotomia política das últimas eleições, a trama proposta por Tabajara Ruas pode, e deve, esclarecer algumas mentes brasileiras que pregam menos diálogo, e mais conflito. O ator Murilo Rosa, em entrevista exclusiva ao nosso repórter, JOÃO FRANCISCO WERNECK, é quem sustenta que, tanto o major Ramiro quanto o capitão Francisco, “acabam revelando uma mensagem muito digna”. Em tempos de discursos de ódio pela eliminação daqueles que não lhes convêm, esta conversa com o ator é um aceno para a paz, o diálogo, a tolerância.

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Murilo Rosa, em cena do filme "A cabeça de Gumercindo Saraiva" (Foto: Divulgação)

O filme apresenta um período delicado da História brasileira. Qual a importância de o cinema nacional contar as nossas histórias?

É fundamental. É através dessas nossas histórias que a gente pode criar uma identidade maior, principalmente com relação ao mercado internacional. Quando você se entende, e busca entender a sua verdade, é mais fácil tocar as outras pessoas, e outros lugares, também. E esse filme é um retrato. Na minha opinião, é uma lição de moral. Um tema com uma conduta tão digna diante de ideias opostas, e eu acho que no momento em que vivemos hoje, essas ideias opostas, representadas pelos personagens Major Ramiro e o Francisco, acabam tendo uma mensagem muito digna. São dois homens, com ideias diferentes, que encontram uma dignidade no final. Bem diferente dos dias de hoje. Mas eu acho que a nossa história é riquíssima, e nós não podemos nos esquecer dela.

O que falta para o cinema nacional se tornar uma referência cultural, como acontece na Argentina?

Na verdade, o que falta é investimento. Precisamos investir no mercado cinematográfico, e em todos os setores. O cinema argentino investiu muito na História, eles têm grandes contadores de histórias, e eles encontraram uma identidade com isso. A gente, por aqui, precisa dar uma repensada nessa questão do modismo. Estamos sempre querendo surfar a mesma onda. E existem ondas diferentes, tribos diferentes e públicos com gosto diferente. Eu tenho a sensação de que sempre foi assim: “A época do cinema de favela”, “época do cinema de cangaceiro”, as comédias… é preciso despertar o interesse do público em todas essas portas. É preciso começar a aprender a criar as nossas histórias e não demorar tanto tempo para que essas histórias se concretizem. Por exemplo, “Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”, peça de Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar. Eu fiz essa peça com a Leandra Leal há cerca de 15 anos. E na crítica foi dito que se tratava de um dos cinco maiores clássicos do teatro brasileiro. Uma peça que estava esquecida, de que ninguém falava. Agora, vai virar filme, um projeto que nasceu desse meu desejo, que vai ter direção do Marcelo Gomes. Se a gente consegue resgatar a nossa história, e descobrir detalhes, a gente toca, e consegue atingir o nosso objetivo.

Como foi trabalhar com o diretor Tabajara Ruas?

Foi um grande encontro. O Tabajaras é de uma gentileza única. Eu amo o Sul, e já fiz alguns trabalhos por lá. Desde “A Casa das sete mulheres” que eu estava morrendo de saudades de fazer um trabalho de época, voltar a “brincar de bangue-bangue”. Esse filme proporcionou isso, e eu sou muito grato ao Tabajaras. Ele é de uma segurança que é muito bacana. Ele deixou a gente muito à vontade. Tudo foi muito compartilhado. Eu só tenho elogios ao Tabajara. Um ser humano incrível, que conseguiu achar sua posição como pensador. E ele é muito organizado mesmo, principalmente no set. Nós cumprimos todo o plano de gravação, sem grandes surpresas, e isso levando em conta o clima do Sul, que muda de repente. Às vezes, eu brinco e digo que o cinema é o tempo da paixão, e não pode haver crise na paixão, é preciso vivê-la intensamente. O cinema é o resultado de uma união. Então, foi muito bacana. Inclusive, vou confessar um segredo por aqui: a resistência do pessoal do sul é diferente da nossa resistência. Os caboclos por lá terminam a gravação entram na madrugada adentro de viola.

Como foi interpretar o major Ramiro de Oliveira?

É um personagem delicioso. O major Ramiro é um personagem que foi construído nos seus silêncios, nas suas pausas. No que o outro está falando. Fomos combinando isso. Essas dúvidas, inseguranças, ou certezas, construíram o personagem.

Até por que ele é um estrangeiro nessa guerra, não é?

Exatamente. Ele vai de São Paulo para o Sul. Floriano Peixoto coloca ele nessa guerra, e ele fica cinco meses por lá, sem entender praticamente nada, sem entender o real motivo do conflito. Então, ele está perdido nessa guerra. Ele é um grande oficial, um grande militar, um atirador de elite, top de linha, e que se vê perdido em meio a selvageria. Ele tem suas convicções balançadas, mas acima de tudo o papel dele é cumprir sua missão, mesmo em um lugar marcado pelo fracasso das relações. A relação humana de ambos os lados nessa guerra é um fracasso completo. E o major se vê perdido em meio a este confronto, e durante isso ele recebe uma missão ingrata, que era levar a cabeça do General Gumercindo Saraiva até Porto Alegre, para entregar ao Governador. Uma barbárie, mas ele vai. Durante esse trajeto, que quando o filme se passa, ele enfrenta os filhos do Gumercindo, que nada mais querem além de dar um enterro digno ao pai.

Constitui-se um conflito interior do major?

Totalmente. Existe um embate psicológico nesse trajeto, durante essa missão. É tudo muito legal. As imagens do filme são brilhantes, uma paisagem muito linda, com uma fotografia melhor ainda do Alexandre Berna. Um roteiro enxuto, direto ao ponto. Foi um belo passeio.

Você já interpretou praticamente todos os grandes heróis do Sul. Com qual deles você mais se identificou?

O Corte Real, da “Casa das sete mulheres”, era muito interessante. Ele era um herói de guerra, um personagem que existiu, de fato, e que era “o cara” em cima do cavalo. Ele era “o cara” da guerra. Mas vivia a situação de uma desilusão amorosa. Ele era apaixonado pela personagem da Mariana Ximenez, a Rosário, que não correspondia esse amor. Então é a história daquele personagem incrível, que não conseguia resolver seu caso amoroso. Quando ele morre, no final, as pessoas ficam muito tocadas. Um herói que não realizou sua vida pessoal. Foi um personagem muito dramático, cuja cena de sua morte foi uma das mais importantes da minha carreira. Já o Ramiro, deste filme, é um herói romântico. Porém, todo herói romântico tem um subtexto sombrio. O passado do major Ramiro é sombrio. Ele escreve em seu diário as suas frustrações… E isso é muito interessante, porque ele ao mesmo tempo é obstinado pela sua missão. O ponto em comum é que ambos são militares incríveis. A diferença é que o Corte estava de um lado, e Ramiro de outro. Já o Bento Gonçalves é uma lenda no Sul, o que faz dele mais interessante ainda.

Em “A cabeça de Gumercindo Saraiva”, se tornam corriqueiras as rixas de sangue, com execuções vingativas de ambos os lados. A ausência de um Estado de Direito seria o motivo?

A cabeça que eu levo ali é a cabeça de todo brasileiro, desde quando esse lugar foi descoberto. Aquilo ali é a nossa cabeça, degolada há muito tempo, e até hoje tentamos nos reerguer. Eu acho que, quando você não tem encontros, debates, respeito, tolerância, você vai gerar guerra. Mas o mundo está em guerra desde quando? Desde sempre, não é. A história da humanidade é marcada por guerras. Se pegarmos hoje, quantos lugares neste planeta enfrentam conflitos graves, armados? O filme mostra duas pessoas que no final conseguem chegar a um ponto em comum. Talvez, se o filme continuasse, esses caras, o Francisco e o Major, talvez eles caminhassem juntos. Acho que respondi a sua pergunta.

É inevitável falar que o Brasil está dividido como nos anos da Revolução Federalista. Quais lições o público pode aprender com o filme?

Esse filme é uma lição de moral. Ele mostra que duas ideias opostas podem ter dignidade. O que falta hoje é respeito, tolerância. Uma das principais táticas de guerra é a mentira, a desinformação. É o que estamos vendo, não é?! Veja a quantidade de maluquice que a gente recebe. Somos bombardeados o tempo todo com notícias malucas de ambos os lados, estamos em uma sinuca de bico, uma situação esquisita. Principalmente quando vemos amigos, família, brigando por isso. Na minha família, a gente não está tendo brigas. Nós temos um combinado: o respeito à democracia. Por mais equivocado que eu possa pensar que você está, eu te respeito. O filme, na verdade, mostra isso. Como ideias opostas, pensamentos diferentes, podem coexistir com a dignidade acima de tudo isso. Talvez o filme seja uma lição de moral para o comportamento dos nossos próximos.

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NOS ÚLTIMOS DIAS, a sociedade carioca sofreu duas perdas que tocaram a todos. A da querida Regina Priolli, que cativava por sua simpatia, seu look impecável, bem como seu perfume inconfundível. E do grande empresário do setor da construção civil e incorporação, Rogério Zylberjztein, detentor de vários prêmios por seu arrojo e pioneirismo. Vamos sentir muita falta de ambos.