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"Não temo um novo golpe porque o Brasil consolidou a sua estrutura democrática"

Beto Herrera / Jornal do Brasil -
Maria Paula Araújo
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Há muito não se via um debate tão polarizado no país, onde não mais os protagonistas se restringem à dialética entre progressistas e liberais, esquerda ou direita, PT ou PSDB. Há um novo fator no jogo político brasileiro e, diante de uma decisão de extrema importância, esta que tomaremos juntos no próximo domingo, dia 7, a Coluna sentiu-se na obrigação de esclarecer o que de fato pode representar essa escolha. No mundo todo, é perceptível o ressurgimento de movimentos de extrema-direita, cujas características nacionalistas, xenófobas e racistas assustam um século em que o conceito dos Direitos Humanos parecia consolidado. Poucos puderam prever que depois da tempestade haveria outra tormenta. E justamente quando imaginávamos tempos de bonança, o perigo volta a nos assustar. Há quem diga que é melhor não falar no diabo, sob o risco iminente deste aparecer e bater à sua porta. Mas nós convidamos a professora e historiadora Maria Paula Araújo justamente para falar dele, e também de seus perigos.

A professora doutora Maria Paula Araújo nos recebeu em sua sala no IFCS. Ela é uma especialista em Ciência Política e nos Anos de Chumbo, período que compreende a ditadura militar de 1964. Seu currículo e sua imensa pesquisa acadêmica dispensam maiores apresentações. A nós ela falou abertamente do panorama político que paira sobre esta eleição presidencial. Além disso, comentou sobre ditadura, tortura e o papel das mulheres na manifestação do último sábado, encabeçada pela hashtag elenao.

Houve um tempo no Brasil no qual políticos civis não reconheciam o resultado das eleições. Houve um tempo no Brasil no qual militares de alta patente ameaçavam não reconhecer o resultado das urnas. Bom, este tempo está de volta. Este tempo rejeita o pleito democrático e, sem a menor cerimônia, flerta abertamente com a ditadura. A professora Maria Paula em entrevista a JOÃO FRANCISCO WERNECK, apresenta não apenas algumas explicações para este momento que vivemos, como faz seu alerta: “Direitos Humanos é o consenso mínimo”.

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Maria Paula Araújo (Foto: Beto Herrera / Jornal do Brasil)

A historiadora Maria Paula Araújo, segundo informações colhidas no Lattes em junho deste ano, é professora titular de História Contemporânea da UFRJ, onde integra o Programa de Pós Graduação em História Social. Possui graduação em História pela PUC do Rio de Janeiro (1979), mestrado em História pela UFF (1989), doutorado em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (1998), pós doutorado (com bolsa da CAPES) no Instituto de Desarrollo Económico y Social na Argentina (2007) e Pós doutorado sênior (também com bolsa da CAPES) no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, desenvolvendo pesquisa sobre a transição política portuguesa (2015). Tem experiência na área de História Contemporânea, com ênfase em Política e Cultura, atuando principalmente nos temas memória, história oral, imprensa; grupos, partidos e organizações de esquerda; ditaduras e resistências; processos de redemocratização e justiça de transição. Participa do Laboratório de Estudos do Tempo Presente e do Grupo de Estudos da Ditadura Militar. Integra a Rede de Estudo dos Fascismos, Autoritarismos, Totalitarismos e Transições para a Democracia.

De onde veio o seu interesse pela Ditadura de 1964, na qual se tornou especialista?

Eu sempre tive um interesse em política, e particularmente esse período da Ditadura foi quando eu fiz a minha formação como estudante, intelectual e sobretudo acadêmica. E justamente quando eu entrei na Universidade, no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o IFCS, foi um momento importante para o movimento estudantil. As esquerdas haviam feito uma autocrítica sobre a luta armada, e havia uma vontade generalizada de construir um movimento mais unitário, cujo objetivo era discutir a retomada da democracia. Então, teve a Campanha da Anistia, a Constituinte, as Diretas Já… Eu participei de tudo isso. Quando me tornei professora, minha vontade foi aprofundar esses temas de estudo. Então, nós inclusive formamos um grupo de professores para discutir e debater o assunto, que posteriormente organizou, em 2004, um seminário sobre os 40 anos do Golpe. Foi um seminário móvel, que visitou diversas universidades pelo Brasil.

O que explica parte da juventude universitária apoiar um candidato que flerta abertamente com a ditadura?

É difícil explicar. Sempre me pareceu que a rejeição e a crítica dos jovens com relação à ditadura era algo consensual. Mas há vários fatores em jogo. Eu acho, houve um esforço, desde o FHC, que mobilizou comissões de reparação, e posteriormente com o governo da Dilma, com a Comissão da Verdade, para tratar deste tema. Mas talvez tudo isso tenha se tornado aos olhos de um determinado público um ato político.

A Lei da Anistia contribui para esta discussão?

O fato de o Estado não ter feito condenação pública das práticas de tortura foi um problema. Não acho que seriam necessários o julgamento e a punição física de cada uma dessas pessoas. Mas acho que deveríamos tomar como exemplo a “Comissão da Verdade” que fizeram na África do Sul. Por lá, o foco era nas vítimas e no que havia sido feito com elas. Então, ela, a vítima, declarava à Comissão o que havia sido feito com ela, as violências, e então o perpetrador era chamado para, em primeiro lugar, pedir perdão à vítima, e depois, ele, o agressor, pedia ao Estado a sua anistia. E a anistia só era dada se ele admitisse que havia cometido um erro. A nossa anistia veio por um decreto, e para todos, é diferente. Na África do Sul, a anistia foi individual, então o fato aparecia, era tornado público, ao invés de ser varrido para debaixo do tapete, como nós fizemos. Isso obrigava ao perpetrador reconhecer seu erro. Se ele não fizesse isso, o governo abriria um processo penal para investigar esse sujeito. O que os sul-africanos fizeram foi promover uma justiça reparadora. Em vez de centrar o foco na punição, o foco era a restauração do tecido social. Os erros foram reconhecidos. O Brasil não teve isso. Muitas histórias da nossa ditadura seguem no obscurantismo.

Principalmente os casos de tortura...

O Bolsonaro, por exemplo, fez apologia pública à tortura, elogiando um homem - Brilhante Ustra- sobre quem pesa a acusação de muita gente de que era um torturador. Eu já li declaração dele (Bolsonaro) dizendo que o problema da ditadura foi que ela “torturou, mas não matou”. Como pode uma coisa dessas? Ou seja: não houve um reconhecimento forte o suficiente do Estado das práticas de tortura. Como isso não foi feito, isso não foi banido como deveria. Agora, a tortura é prática entranhada em nossa sociedade. Não podemos esquecer que somos uma sociedade escravocrata, que conviveu tranquilamente com os castigos mais cruéis possíveis contra a nossa população negra. Então, durante a Ditadura, essas práticas foram utilizadas. E depois dela também, só que contra os pobres, os negros. Isso é violência de Estado. A polícia é agente de Estado. Há dois documentários fantásticos sobre isso: “Autos de Resistência”, e “Nossos mortos têm voz”. Precisamos criar uma cultura de respeito aos Direitos Humanos.

Há algo de semelhante no contexto histórico que antecedeu o golpe de 1964 e o crescimento de Fernando Haddad agora, em 2018?

A ditadura sempre teve uma base de apoio. Gramsci explica que nenhuma ditadura sobrevive sem uma base de apoio. Ditadura nenhuma se impõe, há sempre uma parcela que apoia. Eu sou muito reticente em fazer comparações. Com relação aos partidos, as forças em oposição são diferentes daquelas que estavam postas em 1964. Mas há algo de semelhante. A falta de uma frente única de esquerda mostra isso. Outro ponto de semelhança é o papel da elite brasileira, dos empresários, que são muito predadores, aferrados aos seus privilégios. Qualquer política distributiva proposta por um governo já constitui uma ameaça à sensação de privilégios que a elite tem. Eu acho que a elite empresarial volta a repetir aquele ódio de 1964. Um ódio contra as feministas, contra os gays e até contra as cotas, em certa medida. E as pessoas acreditam no que elas querem. A corrupção deve ser combatida, ninguém pode ser contra isso. Mas ficou comum levantar-se a bandeira da moralidade justamente quando se há um governo progressista no poder: foi assim com Getúlio Vargas, Jango, Dilma, Lula…

A imprensa teve seu papel nessa perseguição pela moralidade.

Tocqueville já dizia que a liberdade de imprensa só é um grande valor quando há pluralidade de imprensa. No monopólio de imprensa em que vivemos, só há a liberdade de expor, declarar e circular um único pensamento. Estamos vivendo tempos assim…

A Ditadura foi um desfecho improvisado. Por que durou tanto tempo?

O discurso do Castelo Branco era de que seria rapidinho, e depois eles iriam sair. Mas eles tomaram medidas e decisões que construíram uma nova legalidade na qual eles construíam as regras. Isso em conjunto com desejos mais fundos de outros setores da sociedade. Ela não é produto de um desfecho improvisado. Não é por acaso que aconteceu o golpe militar. Estavam em jogo, naquela época, diversos projetos de país. O interesse do capital internacional estava muito envolvido, talvez por isso ela tenha durado tanto tempo.

Se Haddad for eleito, você teme um novo golpe?

Eu acho que não podemos entrar nessa. Não se alimenta o monstro. Não temo um novo golpe porque acredito que o Brasil nos últimos anos consolidou a sua estrutura democrática. O PT vai ter que mudar um pouco. Baixar sua arrogância e compor com uma frente, que seja a mais ampla possível, com Marina, Ciro, Boulos. É preciso compor o governo de maneira ampla para isolar esse discurso de golpe, de ditadura. E eu acho que este foi o espírito do ato de ontem - Mulheres contra Bolsonaro. Um ato apartidário, onde todos colocaram o bottom do “ele não”, “ele nunca”, e isso inclui até a turma do Alckmin. É dentro deste escopo que esta frente deva ser construída. E é fantástico que as mulheres tenham tomado essa iniciativa.

E qual é a semelhança do #elenao com a resistência feminina durante a ditadura?

Com esse ato de sábado as mulheres conseguiram fazer algo que a esquerda há muito tempo não consegue fazer: uma unificação. Independente de posição, o cerne dessa posição é o discurso em defesa da democracia. Elas perceberam isso mais do que as esquerdas. Esse é o sentido deste ato. Naquela época, de ditadura, as mulheres exerceram um papel de Antígona. As Mães da Praça de Maio são as Antígonas modernas. As mulheres, em toda América Latina, fizeram um papel único. Eram elas que percorriam os porões da ditadura procurando seus filhos, maridos, irmãos. Na Argentina, elas assumiram um papel de protagonista muito importante. E no Brasil também. As primeiras manifestações de pessoas cobrando do Governo respostas sobre os desaparecidos no Brasil são de mulheres, mães. O primeiro movimento pela anistia foi feminino, e veio da Therezinha de Godoy Zerbini, acho que em 1975. O papel delas foi muito grande e pioneiro.

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ATÉ MÁRCIA TIBURI, a candidata do PT a governadora, denuncia os apoios de seu partido a Eduardo Paes. Fato é que, com a possibilidade de Garotinho e Tarcisio Motta apoiarem Romário no 2º Turno, é fundamental a Paes ter o PT do seu lado. Quando ele pede votos do Senado para Aspásia Camargo, estaria esvaziando Flávio Bolsonaro e tentando transferir votos para Lindbergh Faria.