ASSINE
search button

"Nunca disse ao Requião que nós tínhamos a Globo e não precisávamos de TV pública"

José Peres -
Hilde entrevista José Dirceu
Compartilhar

HILDE - Sob todo esse estresse que você viveu e vive, condenado a 41 anos e um mês de prisão, você está me parecendo muito bem. Você é um homem à prova de angústias?

José Dirceu - Eu falei sobre isso, quando Palocci fez a delação. Não que não me custe dor, sofrimento, medo, pânico de ficar na prisão, mas não estou disposto a abrir mão de dignidade, de meus sonhos, para fazer delação. A vida de preso, de ignomínia, porque você não tem liberdade, mas não tem outra alternativa: tem que se organizar na prisão, se alimentar bem, fazer exercício todos os dias, e isso não é privilégio, todos fazem, ler, porque você abate quatro dias com a leitura de um livro, e trabalhar, porque a cada ano você abate cinco ou seis meses da pena.  

Macaque in the trees
Hilde conversa com o ex-ministro José Dirceu (Foto: José Peres)

O racional se sobrepõe ao seu emocional?

Nos primeiros dois meses fiquei muito mal. Tive insônia, depressão. Minha filha estava para ser denunciada, meu irmão foi preso, investigado, e ele está ainda cumprindo pena. Minhas filhas perderam o emprego, tiveram que vender carro.

Atingir a família é uma técnica?

Atingir a família é um método com todos, bloqueia os bens, a conta bancária e vai atrás da família. As delações foram primeiramente conseguidas na base das prisões antecipadas e as penas longas de prisão. Sem a prisão preventiva, a pena antecipada, não haveria delação. Eles são réus confessos. Eles mesmos dizem que sem a prisão preventiva não haveria delações. O STF agora revogou isso. O que a lei diz é que, se pela segunda vez o investigado, o réu, o cidadão se negar, poderá haver a condução coercitiva.

Mas demorou para revogar...

Eles (Lava Jato) criaram o clima de que eram os únicos a lutar contra a recuperação. Esqueceram que todas as leis, os instrumentos que eles tinham, foram dados no governo do Lula e da Dilma. Esqueceram que as carreiras, reestruturação do Tribunal de Contas, da Polícia Federal, da CGU, da AGU foi no governo de Lula e Dilma.

Quando começou esse processo de desestabilização?

Na ação AP 470, chamada de Mensalão, em que eu fui a principal vítima, foi o começo de processo de desestabilização do governo, de bloquear o governo em suas ações, para depois fazerem o impeachment. Tentaram fazer o impeachment, mas não conseguiram, em 2006. A “Folha” chegou a pedir o impeachment. É a teoria do domínio do fato.

E também quiseram desacreditar os militantes de 68, destruir a aura de heroísmo daqueles jovens.

Foi para atacar a memória da luta armada, da resistência à ditadura de 1968. Eu virei bandido em dois dias, em junho de 2005. Nunca tinha sido investigado em toda a minha vida, nem com Imposto de Renda, legislação eleitoral, nem Comissão de Ética, nem processo, nada. Virei bandido em 24 horas, porque Roberto Jefferson disse que era chefe do Mensalão. E não havia dinheiro público, tudo foi inventado, criaram a história. E estamos vendo agora quem é o Roberto Jefferson.

Todos sabiam quem era Roberto Jefferson.

Sabiam. Como sabiam que estavam entregando o governo para Temer e os quatro cavaleiros do apocalipse. Moreira Franco, Padilha, Geddel, Jucá. Assim mesmo fizeram o impeachment, porque o objetivo deles, exatamente, era criminalizar Lula e o PT. Mas o efeito foi justamente o contrário do objetivo deles. Hoje, Lula ganharia a eleição em primeiro turno.

E você, vai também conseguir reverter a campanha que atingiu você?

O apoio que encontro é muito grande. Em nível internacional, tenho apoio não só da esquerda, como de todos aqueles que me conheceram, que trabalharam comigo. Qualquer país que eu visite serei recebido pelas principais personalidades, pelos principais partidos. Tenho recebido convites e solidariedade oficial no exterior. E muito apoio da juventude. Agora mesmo fui recebido por ela na minha faculdade. Há um reconhecimento de minha luta e de que tudo isso foi um processo político. Sabem que estou vivendo de minha aposentadoria, moro no apartamento da mãe de minha mulher, Simone, meus filhos vivem por conta própria.

E a Globo?

Quando fui preso fiquei sabendo pela Globo. Fiquei sabendo pelo Jornal Nacional que estava sendo investigado. Quando disseram que abriram meu sigilo, eu já estava com tudo aberto na internet. Venderam a ideia de que eu tinha ganho 40 milhões. Mas foram 40 milhões em dez anos! Eu ganhava em média, por mês, 50 a 60 mil reais, podia muito bem ter os bens que eu tinha. Podia ter comprado a casa de Vinhedo financiada pelo Banco do Brasil. A casa de filha custou menos 200 mil. A da minha mãe, de 200 mil. E isso ao longo de dez anos.

Aquela sua reunião com o Requião, em que ele diz que você afirmou que vocês tinham a Rede Globo, e não precisavam de uma TV pública, isso é verdade? 

Virou verdade, não é? Não vou dizer que não é verdade. Eu vou dizer que eu dou um boi para não entrar em uma briga com o Requião. Ao contrário do ditado mineiro, que diz que eu dou um boi para não brigar, e uma boiada para não sair da briga. Eu nunca disse isso para o Requião. Eu nem tratei deste assunto e nem era responsável por isso. Isso ele tinha que discutir com o Gushiken, com a Secom, podia discutir isso com o Ricardo Kotscho, com o André Singer, que era o porta-voz. Eu nunca invadi essa área da publicidade. O que eu posso dizer é o seguinte: o Lula criou e tentou impulsionar a TV pública, o Lula descentralizou a publicidade para os jornais de todo o Brasil. E todos os jornalões fizeram editorial contra...

Você teve interferência nisso?

... e Lula, principalmente, depois que saiu do governo, se deu conta de que era preciso, e deixou já uma proposta de reforma do Franklin Martins.

E a Dilma engavetou...

Não levou adiante.

Como você viu a “abdicação” do Joaquim Barbosa, assim que terminou o Mensalão?

Bem, o Joaquim Barbosa tem que ser visto sob a luz da psicóloga. A recepção a Joaquim Barbosa no Supremo foi muito preconceituosa, e na mídia também. A mídia tratava ele como um analfabeto jurídico, que só tinha sido nomeado porque era do PT ou por ser negro. E, no Supremo, se nos recordarmos no primeiro, segundo e terceiro anos, ele foi muito humilhado. Eu acho que ele se apegou à relatoria do Mensalão porque a mídia deu uma mensagem muito clara para ele. Nós o transformaremos numa celebridade... Porque hoje todo mundo é celebridade, e esse jogo de celebridade, no Brasil, é muito poderoso para atrair certas personalidades que não têm lado, que não têm sonhos, porque elas passam a trocar a aparição no Jornal Nacional e o aplauso de certos setores da sociedade, a ascensão nos bares, restaurantes, em novos ambientes, quer dizer, o cara se deslumbra. É evidente que isso se repete com certos ministros do STF hoje, e o Joaquim Barbosa foi um caso típico. Agora, veja bem, Joaquim Barbosa se aposentou aos 60 anos de idade para ser uma celebridade, por quê? Afinal, o que ele é? Não é advogado, professor, não voltou nem para a toga nem para o Ministério Público, e essa é a vida dele, ser celebridade. O Joaquim Barbosa se comportava como um progressista de esquerda. E o Ayres Brito? Ele era suplente de deputado do PT. O Eros Grau, todos eles tinham passado. Um até era do Partidão. O Fachin agora é o caso mais recente, ele deu um voto extraordinário, “fora da curva”, como diria o ministro Barroso. O Barroso é hoje o grande embandeirado da Lava Jato. Iluminista, ele vai refundar a República, vai fazer a roda da história girar, um país novo está nascendo... acima da Constituição. Ele diz que, para defender a democracia e a moralidade pode mudar qualquer artigo da Constituição. Na verdade, é a isso que nós estamos assistindo. Na verdade, o Supremo se tornou um poder político, e vai se dividir, porque todo poder politico se divide. Se partidariza. O Supremo hoje não é um poder moderador. Esses dias, a ministra Cármen Lúcia fez uma fala que o Jornal Nacional transmitiu. Foi um pouco incompreensível a fala dela, mas, lá pelas tantas, ela afirma que o papel do Supremo é reinterpretar a Constituição, porque são novos tempos. O papel do Supremo é ver a compatibilidade da lei com a Constituição. E não reinterpretar, atualizar a Constituição. Isso é papel do Congresso Nacional. O Supremo assumiu o papel do Judiciário e do Executivo. Porque, muitas vezes o STF está tomando medidas que são de exclusiva competência do Executivo. Por exemplo, o indulto do Michel Temer. O ministro Barroso, a Cármen Lúcia e a Raquel Dodge não podiam alterar ou aceitar. Porque é de exclusiva competência do presidente da República, e é discricionária. Ele pode dar um perdão, uma graça, para quem ele quiser. E ele pode dar indultos, sim. A Constituição não estabelece se é um terço da pena, um quarto, um quinto... Se é até 70 anos ou 12, e nem diz que crime hediondo não se pode ter. É o presidente que estabelece.

A entrevista prossegue amanhã...

----------

José Dirceu lança hoje no Circo Voador seu livro de Memórias, escrito no cárcere. A primeira edição de 30 mil livros, já foi esgotada. A segunda já roda no prelo. O interesse nacional é grande. Depois de mais de dois anos de mutismo, ele agora fala, e fala muito, sobre a política, o Brasil, a Globo, e sobre os governos do PT.  

---------

Com João Francisco Werneck

Tags:

cultura