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Crônica de um natal familiar no Alvorada

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Todas as luzes do palácio estão acesas. A piscina e os jardins iluminados. Os funcionários vestidos com um uniforme de gala preto. Cada convidado que chega é recebi-do com uma cortesia especial. Deixa o carro na rampa e é conduzido para o amplo salão do andar térreo. Antes, passa por uma revista de segurança. Armas de uso pessoal estão liberadas. Há proibição apenas para o porte de granadas. Detectores foram programados para localizá-las. A mesa está posta, coberta por uma toalha de renda branca, com buquês de flores nas extremidades e garrafas de champanhe descansando nos baldes. Copos de cristal reluzentes aguardam o momento de serem empunhados.

A temperatura da noite é agradável, a chuva anunciada não chegou. O insólito espetáculo a ser desempenhado por múltiplos personagens, alguns alegóricos, outros grotescos, está pronto para ser aberto, como se fosse uma peça de teatro do absurdo, de Arrabal ou Ionesco. A festa do natal de 2020 dos Bolsonaros foi concebida para se transformar no grande acontecimento de encerramento do ano, não importa o quão desfocada esteja da realidade exterior. Alertados com antecedência, nenhum convidado apareceu de máscara. Equipes de jornais e TVs foram retidos num bloqueio a uma distância segura de 2 quilômetros.

Nunca antes em sua história, desde Niemeyer ou JK, tido como um grande dançarino e festeiro, o Palácio da Alvorada havia sido palco de uma encenação tão exótica, uma combinação de fé e celebração para festejar dois acontecimentos que marcaram o ano do clã presidencial e seus acólitos, muitos deles ligados a operações fraudulentas e do ramo miliciano. A aproximação do extraordinário número de 200 mil mortos pelo covid 19, e o êxito na montagem do programa especial Bolsa Família Bolsonaro, sem que nenhum de seus integrantes fosse preso.

Pazuello circula pelo salão segurando uma embalagem de cloroquina. Faz uma piada e diz que a trouxe para dar aos gansos do presidente. Logo descarta o uso da vacina russa, esse governo não vai fazer propaganda do Putin e seus comunistas. Como se fosse fazer uma mágica, tira do bolso uma tabela com a intenção de demonstrar que não e necessário usar modelos matemáticos complexos para prever que o aumento do número de óbitos chegaria a esta cifra, de 200 mil. Se em agosto atingimos 100 mil, bastava manter a proporção. Heleno, a seu lado, balança a cabeça afirmativamente enquanto puxa um garçom para pegar um copo de uísque.

Numa roda com Bolsonaro e Michelle ao centro, os olhos de Queiroz brilham ao falar da operação que comandou diretamente do gabinete de Flávio, para dar sustentação financeira à família do presidente. Foi preciso juntar um grupo solidário de funcioná-rios com laços de parentesco, pais com seus filhos, mulheres e ex-mulheres, noras e genros. Milicianos, seus familiares e agregados. Todo o dinheiro arrecadado devidamente rachado nas proporções estabelecidas, aquilo que os procuradores e a imprensa chamam de rachadinha. Funcionou bem durante anos. E ninguém está preso.

Carlos, um dos filhos, pergunta se 27 depósitos na conta da primeira-dama não foram um exagero. - Para ser franco, acho que não, chamam menos a atenção um a um do que depósitos volumosos. Mas prometo nunca mais usar cheques. É mais seguro co-mo fiz com o Flávio, entreguei dinheiro vivo na mão para compra de um apartamento. Nesse instante, Márcia, mulher do policial e ex-funcionária do gabinete, adiantou-se e sorriu, lembrando que também ajudou na operação. A pastora Damares olhou para baixo e conferiu que nenhum dos dois usava tornozeleira.

Mendonça, um dos ministros da corte, aproximou-se do grupo principal, agora reunido numa mesa ao lado da piscina. Tinha o ar compenetrado de um intelectual. Tomou a palavra com voz pausada e tentou resumir a questão. Essa é uma crônica familiar, disse, pensando num livro que havia lido. Em menos de dez anos de atividades, os bolsonaros articularam um esquema que lhes garantiu uma bolsa família exemplar e única. Ro-dou os olhos em torno e viu que estavam ali os três casais que encabeçam o elenco de personagens dessa “cronaca familiare”. Queiroz e sua mulher Márcia, Jair e sua mulher Michelle, além da ex Rogéria, Flávio e sua mulher Fernanda.

Em outra mesa discreta, Rogéria toma champanhe com uma funcionária fantasma, ex-mulher do capitão Adriano, arquivo morto e portador de uma ficha pesada em que constam homicídios, extorsão e lavagem de dinheiro. Ela confidencia baixinho que esperava mais por ser mãe dos três, mas só ganhou um apartamento. Neste momento os convidados são chamados para a ceia. Weintraub entra apressado e tropeça na mesa. Ergue-se em meio a risadas. Ele pega uma taça e discursa - Senhoras e senhores, trago uma novidade de Washington. Fiz contato com a Ku Klux Klan e convidei o grupo para uma daquelas exibições públicas de queima de negros. Espero sugestões para o local.

Guedes desliza para perto do presidente. Parece incomodado. Ergue o copo para um brinde e diz em voz alta “Temos que vender logo essa porra”! Essa porra é o Banco do Brasil. Sons elevados de vozes cruzadas, discussões e cantorias evangélicas revelam que o teor alcoólico está alto neste início da madrugada. Bolsonaro está ansioso por outro motivo. Quer saber do apóstolo ultraliberal se vem chumbo grosso do tio Sam com a vitória do democrata Biden na eleição americana. Está preocupado com a porra do meio ambiente, com a porra dos índios e com a porra das violações de direitos humanos.

Como em toda peça do gênero, há sequências de diálogos absurdos intercalados com tiradas de humor. Na obscuridade de um ponto afastado do salão, debaixo de uma luz tênue, um homem e uma mulher, aparentemente estranhos, conversam. Estão senta-dos um em frente do outro, compenetrados. Parece o ensaio de uma peça de Ionesco. Eles falam do último inverno, da vida sedentária, dos filhos, de bombons, do sexo na pandemia, do trabalho que desenvolvem, dos segredos que compartilham. A palavra impeachment não é dita no diálogo. Por fim levantam e se abraçam. Ele se apresenta, Flávio, filho de Jair, ela, Fernanda, sua mulher. São casados e estão entre os privilegia-dos integrantes desta crônica familiar natalina. 

Jornalista e escritor