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Só mesmo indo tomar um chá nas montanhas

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Folheio páginas do Livro do Desassossego, quase um diário íntimo de Fernando Pessoa, tentando encontrar algo que não sei o que é. Nem ele, ou seu heterônimo Ber-nardo Soares, sabiam o que procuravam ao escrever. Vou passando as páginas, às vezes me detenho num fragmento, releio, mas não me ocorre nenhuma revelação. Mudo de rumo e de ramo e parto para fazer marcenaria, trabalho há anos nesta atividade artesanal, criando pequenas esculturas de madeira. Coloco as luvas, forro a mesa, abro a caixa de ferramentas, separo a lixa, manuseio as peças, mas também não me empolgo.

Quero juntar numa base de madeira, que foi difícil encontrar, duas peças de ori-gens e talhe diferentes. Um galho cru e retorcido, com várias pontas, e outro longilíneo, esbelto, como se a natureza tivesse esculpido o perfil do corpo de uma mulher negra, os quadris firmes e empinados. São pequenas sobras de tronco de árvores, às vezes suas raízes, que foram serradas ou queimadas e depois abandonadas ao sol e à chuva nos ter-renos em que deram frutos. Meu trabalho começa por encontrá-las, quando caminho por trilhas internas no meio da mata, durante passeios na Serra.

Só mesmo quem sabe mudando de novo e colocando para ouvir o CD do Keith Jarrett no Blue Note, Nova York. Faz muito tempo, foi em 1994, que o seu trio se apre-sentou no famoso clube de jazz, no Greenwich Village. Jarrett ao piano, Gary Peacok, no contrabaixo e Jack DeJohnette, na bateria. Puro enlevo, dá para me sentir naquele ambiente enfumaçado, levantando-me com o público para aplaudir, ao mesmo tempo em que me afasto da beira deste precipício tenebroso em que nos encontramos.

Nada de máscara comprimindo a boca, você pode até fumar enquanto toma um uísque e ouve concentrado os primeiros toques de Autumn Leaves, e nem percebe que já entrou When I Fall in love, a última composição do trio. Chega um momento em que o CD acaba e você fica sem saber o que fazer. Se a hora é de virar novamente o jogo ou emendar e ouvir a trilha sonora de Deus e o Diabo na Terra do Sol, numa homenagem à imensa grandeza humana e artística de Sérgio Ricardo, que tomou a liberdade de se in-cluir fora desta. O corona o pegou antes. Deixa um belo legado de letras e canções de um lirismo engajado.

Mas aí toca o telefone, o fixo, e só quem liga nesta peça de museu é ele, o meu neto Theo. Devo me preparar para um papo de no mínimo meia hora, o garoto adora contar e ouvir histórias. Theo acaba de fazer 8 anos, é deficiente visual, ele e seu melhor amigo Enzo, ambos alunos do Instituto Benjamin Constant, na Urca. É claro que estão sem aulas nesta quarentena. Talvez por uma compensação pela perda, cada um dos seus de-mais sentidos, cada um deles um dom divino, segundo o poeta Bandeira, veio superdesenvolvido, em especial a audição.

Logo na primeira vez que o vi, chorando nos braços da mãe, chamei-o de Angelopoulos, numa livre associação com o cineasta grego Theo Angelopoulos (1935-2012), que admiro desde que descobri seus filmes, marcados por personagens que buscam algo que perderam numa paisagem sempre coberta pela neblina. Ganhou a Palma de Ouro em Cannes, em 1998, com A eternidade e um dia. Theo me corrige, soletrando seu nome e sobrenome. Mas gosta do som da palavra grega e já sacou que estou brincando. Logo, nas nossas conversas, seu amigo Enzo ganhou também um sobrenome, Ferrari, o funda-dor da fábrica e da scuderie da famosa marca italiana.

Lembro que preciso desligar a máquina de lavar roupa, mas Theo não para de falar de sua amiga, a porquinha Peppa, uma animação da Discovery Kids. Por sinal, uma indicação do seu amigo Enzo. Ele me ensina que a família Peppa mora numa casa grande, com o papai, a mamãe, o irmão George e os avós. Ela vai à escola e tem uma turma de amigos com os quais se diverte muito, juntando bichos como um elefante e uma gira-fa. Theo sabe de memória os horários cravados de todos os programas. Pergunto como ele vê a Peppa, ele responde como se eu devesse saber, que a animação tem um narrador, vô!, que vai contando todas as aventuras. Um bom narrador, pelo visto.

A de que ele mais gosta é a da viagem interplanetária, que reproduz em casa com os pais e convidados virtuais. Antes, Theo já havia apresentado numa live um jornal de TV, em que dava noticias policiais e fazia uma ronda das mortes pelo coronavírus nos hospitais. Cabia à mãe fazer a previsão do tempo. Da quarentena não se queixa, se vira pelas mãos do pai, a não ser por estar impedido de andar de Metrô, seu vício. Conhece todas as estações pelo nome e a sequência em que estão nas linhas do Rio e São Paulo.

Despeço-me de Angelopoulos e me dou conta novamente do vazio e da incerteza. Nesses meses já arrumei armários, virei o colchão e me emociono com as lives da Mônica Salmaso e seus convidados. Peguei para ler o incensado e badalado livro da jovem americana Kristen Roupenian, cujo conto Cat Person foi levado às alturas pelo “The New Yorker”. Posso estar de mau humor mas não gostei dos dois primeiros que li, uma atmosfera muito adolescente e pouco complexa. Dei o livro de presente a minha neta Luiza. Agora descubro que estou atrasado, preciso saber se hoje é quinta ou sexta para pedir o cozido na dona Antônia.

Só mesmo então depois de tantas reviravoltas, nesta marcha de improvisações em que passei de marceneiro a um camareiro, decido aceitar o convite do músico e escritor Paul Bowles (1910/1999), um americano integrante da beat generation, que passou quase toda sua vida adulta no Tânger, Marrocos, com sua estranha mulher Jane. Lá escreveu livros, compôs, fez experiências com drogas, ampliou seus conhecimentos. Dei-xou dois livros “O Céu que nos protege”, o mais famoso, que virou filme pelas mãos de Bertolucci, e “Chá nas montanhas” (Rocco, 1994). Livro em que ele conversa com a natureza, as folhas das árvores falam e os escorpiões saem das grutas à noite. Bowles me convidou para pegar seu livro e ir até ele tomar um chá nas montanhas, longe da tragédia dos cadáveres enterrados em silêncio e do surto de terror fascista que nos cerca.

*Jornalista e escritor