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O incrível Exército de João Antônio

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Quem entendia do riscado era ele. Narrador visceral, viciado em escrever, ca-paz de passar horas fumando e conversando com seus fantasmas e demônios diante das pretinhas, o teclado de sua Olivetti portátil. Paulistano que se fez carioca e se tornou um escritor brasileiro lido mundo afora. Fascinado pelo submundo, a Boca do Lixo, os inferninhos da praça Mauá e pelos mistérios que rondam as cabeças e movem os pés dos malandros que giram quilômetros em torno de uma mesa de sinuca. Olá, meu parceirinho, está a jogo ou a passeio?, pergunta uma de suas criaturas.

Estou falando de João Antônio, o nariz de turco, cuja obra, espalhada e dispersa ao longo do último meio século será reunida e relançada pela Editora 34, com um trata-mento editorial digno de um clássico. Que ele merece. Falo dele mas não penso em Malagueta, Perus e Bacanaço, três de seus tipos mais famosos, obra marcante de sua estreia literária. Falo de uma outra trupe, menos conhecida, Esdras Passaes, Pedrão e Antônio Contente, um incrível trinca de jornalistas vindos de São Paulo que aportou no Rio de Janeiro no inicio da década de 60, atraídos pelo amigo João, que cá já estava.

Seja por problemas de mercado, briga com a mulher ou convite para uma mudança de ares, os três cavaleiros andantes, talentosos jornalistas de texto, profissionais tarimbados na arte de edição jornalística, sentaram praça Rio. Por um desatino do destino dois deles alugaram um quarto no mesmo apartamento onde eu já me encontrava, num prédio na rua São Salvador, no Flamengo. Esdras e Pedrão, Pedro Medeiros, tornaram-se vizinhos de quarto de um goiano estudante de jornalismo, foca no “Jornal do Brasil”.

Devo logo destacar duas coisas: primeiro, que fiquei fascinado pela oportunidade de conviver com aqueles tarimbados profissionais, e segundo que eles bebiam bem, mui-to acima de meu conhecimento e capacidade etílicas. Esdras, o mais refinado, me apre-sentou certa noite num boteco de Ipanema ao Fogo Paulista, um espécie de conhaque amarelo adocicado, que cuspi fora. João Antônio aparecia para umas conversas enviesa-das no restaurante da esquina da Senador Vergueiro com a Barão do Flamengo, conhecido com o “bar da árvore”, porque lá estava ela frondosa fincada na calçada, entre as mesas.

Pedrão e Esdras foram copy e editores no JB e Globo. Pedrão conhecia literatura russa como poucos, apaixonado pela Lolita de Nabokov e tendo Tchekhov como mestre na arte da dramaturgia e do conto, sua especialidade. Ele mesmo um exímio cortador de textos de repórteres que abusavam de adjetivos e jogavam conversa fora. O paraense Antônio Contente também frequentava as conversas debaixo da árvore. Além do jorna-lismo, dedicava-se a atividades de produção teatral. Um cara bem humorado, irônico, que uma noite, depois do primeiro chope, soltou uma frase que jamais esqueci: “Acordo todos os dias com enjoo do absurdo nesta linda cidade”. Não tinha cara disto, o Contente. Anos mais tarde, também passei a acordar com enjoo do absurdo.

Para falar de Esdras Passaes, considerado o mais brilhante repórter de seu tempo, passo a bola para João Antônio, que reuniu no Rio essa incrível trupe de jornalistas. Que de alguma forma associei ao “Incrível Exército de Brancaleone”, filme contemporâneo de Mario Monicelli, 1966, embora de natureza completamente distinta. Com o título de “Morre o valete de copos”, publicado no livro de contos “Guardador”, editora Civilização Brasileira, João faz uma espécie de perfil em tons surrealistas de Esdras. Transcrevo de forma intercalada, conservando toda a magia do texto.

“Morreu Esdras Passaes, o duende morreu. Morreu o homem que sabia ouvir a música dos copos. Morreu o nosso amigo que gostava de tango, era compadre de Nelson Cavaquinho, tratava marafona como princesa e havia consumido quase tudo de Francis Scott Fitzgerald. Matou-se de viver e de beber. O alma de cristal acabou de solitédio. Primo de Toulouse Lautrec, contraparente de Leon Nikolaievitch Tolstoi, conde, não é de meu conhecimento o que se lavrou em seu atestado de óbito. A causa mortis pode ter sido uma só, sentidamente – alma de cristal.

Esdras Passaes bateu com as dez, apagou a vela, fechou o paletó, foi pra chácara dos pés juntos, apitou (...) Escrevo de Londrina, norte do Paraná, de onde eu faço pava-na para um bêbado morto. Para que a dor de minha geração não seja mais a dor inútil de toda uma geração de calados à força, de enganados e manipulados pelos patrões. ( ...) Aos que não o conheceram em vida dou, em homenagem ao falecido que morreu de vi-ver, uma antologia precária de seus fecundos comportamentos.

(...) Foi um homem na medida dos personagens de Lima Barreto, vivia numa reserva de sonho. Usava cigarro na cigarreira, bebia por cem e cometia uma loucura extrema: virava quadros de cabeça para baixo. Usava relógio de bolso patacão, que vivia parado. Encostava os ouvidos à boca dos copos e revelava: Ouçam, que música! Pedi a alguma consciência cósmica deste ou de outro mundo que eu não precisasse carregar a alça de seu caixão no dia de seu enterro. Esta ultima briga nem travei. Ganhei só por acaso. Descansa, Esdras. Dorme, cara. O porre acabou.”

Internado para tratamento, Esdras morreu num sanatório no bairro de Ipiranga, em São Paulo. O resgate da obra de João Antônio pela editora 34 começa com as reedições de “Malagueta, Perus e Bacanaço”, e “Leão de Chácara”. Aguarda-se a volta de “Calvá-rio e porres do pingente Afonso Henriques de Lima Barreto”, misto de reportagem e memória sobre o período em que o autor se internou no antigo sanatório da Muda, no Rio. A Lima Barreto, pioneiro, sua maior admiração, consagrou grande parte de seus livros.

Ninguém em sua obra, nenhum dos seus tipos, estava a passeio. Ralaram todos, num corpo-a-corpo permanente com a vida. João não era de morder água e se comeu do pão que o diabo amassou soube transformá-lo com suas próprias mãos, recriá-lo com a refinada farinha de sua arte para então servir ao distinto publico uma pasta digna dos melhores criadores. Paulinho Perna Torta, moleque de rua criado na Boca do Lixo, outro de seus antológicos personagens, vem aí para comprovar.

*Jornalista e escritor