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A Copa de 70 nos cárceres de Emílio Médici

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1970 foi um ano duro e interminável nos cárceres da ditadura, um momento de tensão e endurecimento. Uma extensão da década de sessenta, marcada a ferro e fogo por golpes e rupturas. Foram dois sequestros, muitas quedas, tortura, mortes e banimentos. Em junho, quando o Brasil conquistou a Copa no México com um time que se aproximou da perfeição, eu estava concentrado com mais nove prisioneiros no Regimento Sampaio, Vila Militar do Rio de Janeiro.

Acompanhamos de longe pelos radinhos de pilha dos soldados, agachados atrás das grades, a final com a Itália que deu o tri à seleção brasileira, enquanto vivíamos a extrema aflição que precedeu a libertação dos presos trocados pelo embaixador alemão.

Nosso time de dez prisioneiros não chegou a entrar em campo. Permanecemos trancafiados na ampla cela do regimento durante todo o desenrolar simultâneo do sequestro e da Copa. As regras do jogo definidas pelos anfitriões-carcereiros estabeleciam que toda vez que a esquerda dava um golpe fora nós éramos punidos lá dentro. Desta forma, estabeleceu-se a censura de correspondência, a suspensão de visitas e do banho de sol. Os dois aparelhos de rádio foram retiradas da cela. TV nem pensar.

Agora, quando se comemora o 50º aniversário da conquista definitiva da Copa Jules Rimet, voltei ao Sampaio. Lá cheguei, em maio de 70, a bordo de um camburão daqueles chamados “coração de mãe”, que abrigam dezenas de presos. O cortejo saiu do DOPS comigo e foi pegando os demais em delegacias e quartéis. Levei um susto ao me rever nas dependências do inferno logo na primeira parada, o quartel da PE na Barão de Mesquita. De suas entranhas saíram e se sentaram a meu lado o Bruno, Silvio Renan e o Paranhos. Depois, pelo caminho, o camburão parou várias vezes para a incorporação do René, “seu” Correia, Raimundo, Jáder, Gentile e por fim o Apolônio.

Todos velhos conhecidos. Entre janeiro e março, já havíamos nos visto, nus e porrados, pelos corredores da oficina de torturas do Doicodi. Sobrevivemos. Com este time desfalcado chegamos ao nosso destino na Vila Militar já anoitecendo, para cumprir uma temporada de cadeia que ninguém mais tinha a ilusão de que seria curta. Em pouco tempo ficou claro que Apolônio seria o técnico. Revolucionário experiente, começou sua trajetória ainda tenente nos cárceres de Vargas e se forjou nos combates da guerra civil espanhola e na resistência à ocupação nazista na França.

Ótimo animador, deu aulas de francês e foi instrutor de educação física. Diariamente, antes do toque de alvorada, lá estava Apolônio fazendo flexões, pronto para abrir o dia com uma enorme disposição que dava inveja à rapaziada. Logo iniciou a montagem do time. Na primeira preleção viu que faltava um. Tivemos que improvisar com a convocação do bravo tenente Elias. Numa tarde de plantão ele encostou-se à grade e perguntou se podia participar do nosso jogo de cartas. Entrou, pôs a pistola na mesa, recebeu as cartas, jogou e acabou expulso do Exército. Dupla infração: transgressão do regulamento e confraternização com terroristas, tratamento usado pelos oficiais.

Apolônio foi a nossa contribuição para a lista dos 40 presos trocados pelo embaixador Ehrenfried von Holleben, libertados depois de tensas negociações da ditadura do general Emílio Médici com as duas organizações, VPR e ALN, que comandaram o sequestro. No dia seguinte ele estava em Argel, de onde acenou para a turma do Sampaio. Minhas lembranças da Copa no México estão associadas a este momento de privações e proibições. É uma lembrança ligada nos radinhos de pilhas dos soldados tocando a todo momento aquela marchinha que não saía da cabeça: “Noventa milhões em ação/pra frente Brasil/do meu coração/ salve a seleção/de repente é aquela corrente pra frente/parece que todo Brasil deu a mão.”

Irritante, pelo menos para nós, que não estávamos estendendo a mão porra nenhuma, nem tínhamos disposição para participar daquela corrente. Ao contrário, batidos momentaneamente, desejávamos sair e continuar a luta, ainda que em outros termos. Em dezembro, veio o sequestro do embaixador suiço Giovanni Bucher. Desta vez 47 dias sem visitas, correspondência, cigarros, banho de sol, enfim as coisas mais elementares que julgávamos ter direito. Dois sequestros, dois invernos passados em quartéis da Vila Militar, longe do mundo. Em carta à Suely, minha mulher, queixei-me daquele isolamento, “com seu ritual pachorrento, ordinário. O tempo aqui não tem cheiro, não tem não tem cor, não tem sexo.”

Nosso time do Sampaio para a Copa não tinha um Pelé, não havia entre nós um negro para ser escalado no ataque, revelando uma antiga incapacidade da esquerda. Sem um número dez com aquela explosão, não haveria o tri. Modestamente, em nossa formação, Silvio Renan e Bruno ocupariam os lugares de Gerson e Rivelino. René, Paranhos e Correia os espaços de Carlos Alberto, Clodoaldo e Everaldo. Jáder e Gentile ocupariam a zaga, nos lugares de Brito e Piazza. E Raimundinho avançaria pela direita, como Jair-zinho. Se pudesse escolher uma posição, ficaria com a de Tostão, um falso centroavante.

Voltando à brancura de nosso time. Em nenhum momento os partidos de esquerda abriram espaço para a incorporação de negros em seus projetos. Não entraram pra valer na luta contra o racismo porque não fizeram uma denúncia estrutural da escravidão e suas mazelas. Sempre pensamos que a questão dos negros ficaria para depois da tomada do poder. No socialismo, tudo seria resolvido.

Foram poucos os negros que conheci na atividade política. Vou lembrar apenas de um, Wilson Barbosa, o “negão” da Fenefi, Faculdade Nacional de Filosofia, final da década de 6O. Cursou História, entrou na luta armada, foi preso, saiu no sequestro do suíço. No exílio, passou pelo Chile, Suécia e Moçambique. Fez cursos em todos os lugares. Estudou muito. Hoje, um intelectual brilhante, historiador, professor titular da USP cheio de títulos de mestrado e doutorado com uma produção intensa de livros. A Wilson, Apolônio daria a camisa 10.

*Com a participação de meu livro Tirando o Capuz, Editora Garamond, 2004

Jornalista e escritor