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Os meses mais leves vão-se embora

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Estamos vivendo num infindável estado febril, sob um estresse emocional que se transforma em febre verdadeira, com elevação da temperatura e pulsações do corpo. Um amigo acorda sobressaltado todos os dias perguntando quem morreu hoje? Outro, trans-tornado, indaga rispidamente da mulher se algum companheiro caiu. Se ela confirmar, terão que enfiar as roupas numa valise e partir imediatamente, deixando o apartamento onde se encontram isolados para procurar um aparelho (aquele lugar onde os subversivos se escondiam) e nele se enfiarem clandestinos.

Para os dois assombrados brasileiros vivemos uma realidade obscena dominada por duas monstruosidades, que ocupam de forma totalitária o espaço real e imaginário. Um vírus e um verme. A cada dia prevalece um, quando ambos não se juntam, irradiando tensão e calafrios pelos quartos e corredores dos apartamentos. Numa de suas últimas conversas, o Segundo disse que estava passando de novo por um momento de dilacera-mento, de fissão, incerteza e medo. De som e fúria. E fez uma pausa.

O Primeiro quis saber algo mais sobre “o som e a fúria”, mas a conversa foi inter-rompida porque o interfone tocou e ele teve que atender a porta. O almoço chegara. Na segunda-feira o Primeiro chorou copiosamente ao ser despertado com o zap da morte do Aldir, o imortal Blanc. O sarcástico poeta vascaíno da Muda. Embebedaram-se algumas vezes, e ele precisou guardar no bolso da jaqueta versos borrados em guardanapos de papel escritos pelo bêbado. Ele, no papel de equilibrista. Pôs-se a procurá-los, os versos.

Os dois brasileiros são cidadãos de classe média, pequenos burgueses da peça de Gorki, que haviam visto juntos, encenação do teatro Oficina de Zé Celso, na Maison de France do Rio. Um passou temporadas na cadeia, o outro se safou com o exílio. Um escreveu para jornais e revistas e o outro é dado às artes, integrou o corpo de baile do Municipal. Em comum, estavam de acordo que para pensar o futuro teriam que primeiro livrar-se das duas monstruosidades que inviabilizam o presente.

Difícil, porque de um lado o assustador aumento do número de infectados e de mortos prenuncia a adoção do “lockdown”. E de outro, sabem que uma fera acuada pela queda de popularidade e o avanço dos inquéritos no Supremo pode desembestar para um putsch fascista, com a sua falange miliciana. Neste impasse, decidiram convocar Lí-dia, uma querida amiga para uma “live”. Neta de um escritor russo que fugiu do stalinismo, Lídia adotou o sobrenome de Akhmátova em homenagem a sua avó. Faz poesia em tom intimista e confessional. Musa eterna dos dois, sem que nenhum a tivesse.

Conectados pelo celular, aberta a conversa, Lídia, de cabelos soltos e seu nariz tártaro encurvado, deu bom dia e disse que acabara de escrever um poema. Pegou uma folha e leu os primeiros versos: “Hoje tenho muito o que fazer/ Devo matar a memória até o fim/Minha alma vai ter que virar pedra/Terei de reaprender a viver.”* Bailarino e jornalista se entreolharam surpresos e encantados. Um deles disse: Lindo, musa, mas vamos cair na real. Como sair deste pântano infecto em que nos encontramos? *(Trecho de ‘O veredicto’, de Anna Akhmátova.)

Não sei mais o que pensar, disse ela abrindo os braços e espreguiçando. Os militares ficarão com o aventureiro até o final. Não vão largar o poder por nada. Enquanto empresários, banqueiros e milicos estiveram do lado dele, nada muda. Nós estamos presos em casa, em regime fechado, sem direito a visitas, ao olho no olho que constrói a resistência. As redes virtuais e dos robôs são deles, a mídia não nos dará espaço. Sei que a esquerda desuniu, mas não acabou. A terra precisa dela. São tempos árduos, sem heróis...

O numero Dois a interrompeu para dizer que de fato formou-se um exército para-lelo com armas liberadas. Parece que os milicos acham que podem tirar algum proveito do caos provocado pela bandidagem. A verdade é que será difícil. Chegará o momento em que alguém terá que intervir para colocar ordem. Olha o Exército aí! Lídia pressentiu o momento de deixar a conexão. Antes falou que “eu não entendo o que aconteceu. Porque uma pandemia e uma anomalia ao mesmo tempo? Sei que os meses leves estão indo embora.” Disse adeus, amigos, e desligou.

Era a vez do número Um, o que acorda perguntando quem morreu hoje. Ele encarou seu velho interlocutor, fez um gesto alisando a cabeça para mostrar que ele precisava cortar a cabeleira, e desabafou. Soltou uma lista com os nomes de seus últimos pesadelos: Luiz Alfredo Garcia Roza, Boris Fausto, Rubem Fonseca, Moraes Moreira, Aldir Blanc, Flávio Migliaccio...e os milhares de anônimos. Tantas perdas, tantas perdas, soluçou. Tem outros dois que estão lutando e reagindo ao tratamento. Acredito que vão sair. O Sergio Sant´Anna e o Muniz Bandeira. Agora vou fazer uma oração para eles.

Mas você é ateu, contestou o Segundo, o que se irrita com a mulher porque ela não sabe lhe dizer quem caiu hoje. “Sou, mas creio no poder de uma vibração coletiva. Agora diga, que porra é esta de “o som e a fúria”, lá do início da ligação?”. “Simples, meu camarada. Me lembrei do livro do William Faulkner, que conta a história da decadência de uma família poderosa, de generais e fazendeiros ricos. Uma sombria história de loucura e ódio. Peguei para ler. Qualquer dúvida, esclareça com a nossa russa Lídia Ak., que trás nas veias esses Karamazovs e todas as tragédias cruéis.”

*Jornalista e escritor