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O imprevisível funeral de um bucaneiro

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Reconhecida a morte política de Jair Messias Bolsonaro, um aventureiro eleito presidente do Brasil, o país começa as tratativas para o seu funeral. Que se projeta dispendioso para os cofres deficitários do Estado, anárquico e tormentoso no desenrolar de seus episódios. E de duração imponderável, até que se revele, ao término dos embates e embustes jurídico-protelatórios, o momento e o local onde será realizada a cerimônia derradeira do adeus.

Certamente que no Planalto Central, em Brasília, numa sessão do Congresso Nacional ou numa votação no plenário da Corte Suprema de Justiça, embora não se possa afastar um desfecho dramático e imprevisível de um ato de pirataria nos mares do Caribe. Como presidente, suas ações e sua imagem se confundem com a dos bucaneiros, que pilhavam navios e traficavam escravos, na mesma linhagem dos personagens criados por Jorge Luis Borges em sua “História Universal da Infâmia”.

É arriscado prever se esta concorrida cerimônia com centenas de convidados será transmitida pela TV e outros meios eletrônicos, para ser vista em casa, ou se será realiza-da ao vivo. Com o avanço em alta velocidade da pandemia sequer podemos saber quantos de nós chegaremos vivos lá. A cada dia a realidade torna-se mais irreal e surreal ao mesmo tempo. E estamos lidando com um salteador, que acaba de exercitar tiro ao alvo numa academia militar enquanto o país despenca no abismo.

Continuo trancado em casa há 40 dias completados hoje, 30/4, saindo de máscara e luvas para comprar pão na padaria da Anita Garibaldi. A esta altura mais de 80 mil brasileiros foram infectados pela covid 19, outros tantos mil mortos. Mortes que transcorrem silenciosas e invisíveis, longe de mim, mas paradoxalmente produzem um impacto aterrador. Propagador do vírus desde o início, ele é beneficiado pelo isolamento social. Manifestações de repúdio que crescem nas cidades ficam limitadas ao repique das panelas, que reverberam o rancor coletivo das pessoas isoladas.

A saída da pasta da Justiça de seu aliado, o prestidigitador Sérgio Moro, o juiz que construiu sua candidatura e agora o acusa de fraude, crimes de responsabilidade e ingerência na Polícia Federal para proteger os filhos, escancarou a omissão do próprio Moro e o alcance dos crimes praticados por Bolsonaro e seus filhos. Aqui adianto um spoiler para o leitor. A série Globo/Moro iniciada na Lava jato será retomada e eles voltarão a atuar juntos na eleição presidencial de 2022.

O processo de desmitificação completou-se com a cena montada no Palácio para rebater o ministro, transformada numa grotesca e deplorável exibição de incompetência protagonizada pelo embusteiro ao lado de seus amigos e familiares que compõem o governo. Faltou um profissional para dirigir o ato. A atriz Regina Duarte não compareceu deixando dúvidas sobre seu papel na companhia mambembe. Flagrado em ação, o embusteiro ficou nu em público. Como presidente perdeu as condições de permanecer no poder, tornou se um ser desprezível, que comete crimes em série. 

A tal ponto que os veículos considerados grandes da imprensa, os de maior circulação e poderio econômico, estamparam com destaque editoriais na primeira página no dia seguinte. Para advertir seus leitores de que chegou a hora de iniciar um processo de impeachment, a palavra proibida. Por três motivos: a pandemia está matando a população, em especial pobres e velhos; o governo está perdido, não sabe o que fazer, e o país afunda na recessão, com desemprego e falência de pequenas e médias empresas.

O “Estadão”, com sua linguagem elegante e contundente, intitulou seu editorial ‘Sob o signo de Tânatos”, o deus da morte da mitologia grega, e cravou: “É preciso interromper essa escalada antes que Bolsonaro destrua o país.” A “Folha” perguntou no alto da primeira página: “O que teme o presidente?”, para responder que ele jogou o país na crise e precisa ser investigado pelo Supremo e Congresso. E “O Globo” seguiu Moro ao afirmar: “Explicação confusa de Bolsonaro reforça investigações.”

Quando donos de jornais manifestam sua opinião na primeira página exposta nas bancas o leitor desconfia. Foi assim em abril 1964, na articulação do golpe contra o presidente João Goulart, quando todas as manchetes defenderam seu afastamento. Com a diferença de que os editoriais chegaram às ruas junto com os tanques e as tropas. Foi uma ação combinada. Bolsonaro, mesmo escorraçado, foi tratado com mais delicadeza.

Em suas manchetes, os jornais defenderam abertamente o golpe de abril de 64. “O Globo” comemorou com “Ressurge a democracia. Vive a nação dias gloriosos.” O “Correio da Manhã”, que transitou pelas duas doenças infantis da época, o comunismo e o direitismo, foi direto ao ponto. Num dia estampou o titulo “Basta!”, e no seguinte “Fora!,” A primeira frase dizia: “Só há uma coisa a dizer ao Sr. João Goulart: Saia!” O “Estadão” destacou: “A nação jamais se vergará às imposições de um caudilho,” e o “Jornal do Brasil”: “Aqui acusamos o Sr. João Goulart do crime de lesa-pátria.”

Em sua “História Universal da Infâmia, “Editora Globo, 1975”, Jorge Luis Borges cria uma galeria imaginária de personagens de índole perversa, entre eles pistoleiros, caudilhos e corsários, que transitam por patíbulos e cabarés. São sete os contos fantásticos do clássico livro de Borges. Há um tipo que ele designa de “o estranho redentor”, outro de “o incrível impostor”, e um terceiro de “provedor de iniquidades”. Este se ajus-ta ao bucaneiro Bolsonaro, que merece figurar na infame galeria de Borges.

Álvaro Caldas. Jornalista e escritor