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Sob a dor de duas tragédias silenciosas

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Acordo com a manchete em todos os sites de jornais anunciando que Bolsonaro foi posto sob tutela por um grupo de generais, inaugurando um excêntrico regime civil-militar. Em outro hemisfério, o impacto de uma invasão silenciosa toma ruas e bairros inteiros de Nova York, com poder de destruição semelhante ao de uma bomba de hidro-gênio. Para respirar, vou até a janela conferir o cenário irreal das ruas vazias. Espremo uma laranja para fazer um suco e ligo para meu neto, meu interlocutor preferido nestes tempos de desterro. 

Digo-lhe que hoje é dia do jornalista e que os repórteres estão ralando no mundo inteiro para cobrir esta pandemia. Ele não se interessa pelo tema. “Ah, vô, corta essa”. Então resolvo provocá-lo e digo que vou mandar para sua casa dois poetas para entretê-lo na passagem dos dias desta infindável quarentena. E ele de volta: “O que é um poeta, vô?” Digo que é um cara sonhador, um tipo que chuta tampinhas de garrafas nas calça-das. Podes crer que eles não vão encher teu saco.

Theo diz que estou tirando sua concentração de uma conversa com Alexa, a voz artificial de uma mulher que sabe tudo, mas eu prossigo. Tenho dois poetas aqui. Um diz que tem uma pedra no meio do caminho, no meio do caminho apareceu uma puta pedra, um tal de Carlos, o gauche. E o outro está entediado, quer cair fora, disse que vai se em-bora pra Pasárgada, que lá ele é amigo do rei e pode fazer o que bem entender. Este é o Manuel, o Bandeira. Qual deles você quer como companhia?

Há sete anos no planeta, Theo diz que estou inventando moda, que as pessoas velhas como eu não podem sair de casa. Insisto para que escolha um e ele por fim diz que prefere o poeta que inventou esse lugar que tem um rei. Tudo bem, em Pasárgada tem de tudo, é outra civilização, e lá não entra o coronavírus. Deixa comigo, vou emprestar uma máscara pro Manuel e ele vai aparecer aí com uma estrela para te dar de presen-te.

Neste dia do jornalista os repórteres estão nas ruas, gastando a sola dos sapatos, seguindo os rastros do Covid-19, que criou um clima de guerra e espalhou o terror mundo afora. Nova York, a fascinante metrópole cosmopolita, tornou-se o epicentro da epidemia nos Estados Unidos, o país com maior número de infectados no planeta, com mais de 160 mil casos confirmados. Como Bolsonaro, Trump foi irresponsável e agora tem que pagar a conta do altíssimo desemprego, elevada perda de vidas e falência do sistema hospitalar.

Em Nova York, bairros pobres como Bronx, Brooklin e Queens, em sua maioria de negros e latinos, são impiedosamente atacados. Desesperado, o governador Andrew Cuomo bradou aos céus em tom apocalíptico: “Ajudem NW!”. Hospitais de toda a cidade estão enfrentando um aumento assustador de casos diários. Todas as 1880 vagas de UTI estão ocupadas, há falta de respiradores. Necrotérios de dois hospitais estão lotados, médicos e enfermeiras entrevistados relataram que estão sobrecarregados, perto do limite. Dados de apuração diária de repórteres do The New York Times.

Segundo epidemiologistas a densidade populacional da cidade também influenciou na rápida disseminação. O navio-hospital USNS Comfort, com capacidade para mil leitos, salas de operações e necrotério, atracou no pier para aliviar o sistema hospitalar. Enquanto isso reina um vazio aterrador em Wall Street, na Times Square, no West Vil-lage, na Quinta Avenida. Os turistas sumiram e a Broadway dorme com os neons apa-gados e teatros fechados. A cidade já tem quase 7 mil mortos e 142 mil casos confirma-dos de Covid.

A devastação é tamanha que me levou a uma viagem a Hiroshima, cidade japonesa arrasada ao final da Segunda Grande Guerra por uma bomba atômica lançada de um bombardeiro americano B-29. Um ato de intimidação e imposição de força que destruiu uma graciosa cidade às margens do rio Ota para marcar o poderio nuclear de uma potência imperialista. Para a reconstituição desta tragédia em sua dimensão humana recorro à figura de um repórter em seu trabalho, num momento especial em que o jornalismo faz mediação com a história.

John Hersey, repórter da revista The New Yorker, foi enviado a Hiroshima um ano depois do ataque nuclear para relatar o que aconteceu com a cidade e seus habitantes depois da explosão. Hersey fez a que é considerada a mais importante reportagem do século XX, que ocupou toda a edição da revista. Seu impacto foi impressionante. Para os críticos, é o início do jornalismo literário moderno.

Como ele fez isto? Reconstituiu o dia da explosão atômica a partir do depoimento de seis sobreviventes. Mostrou onde estava, o que fazia, o que viu e sentiu cada um deles naquele momento em que perceberam um clarão silencioso que foi se transformando em algo parecido como um gigantesco cogumelo atômico, que matou cerca de 140 mil pessoas e feriu outras cem mil. Segundo seu relato, a explosão ocorreu precisamente às 8h.15 da manhã do dia 6 de agosto de 1945.

“Hiroshima” o livro de John Hersey, foi editado pela Companhia das Letras em 2002 em sua coleção Jornalismo Literário. Todos meus alunos da PUC Rio, nos 15 anos em que lecionei, o leram e resenharam como trabalho de redação.

Catorze anos depois, em 1959, o cineasta francês Alain Resnais vai ao cenário da cidade em reconstrução, ainda com as marcas da tragédia que atingiram sua alma e filma “Hiroshima, meu amor,” um drama pacifista com roteiro de Marguerite Duras. Emmanuelle Riva, uma jovem atriz francesa está em Hiroshima para fazer um filme sobre a paz e se apaixona por um arquiteto japonês.

Não sabemos quanto tempo vai se passar até que o musical “West Side Story”, “Amor, sublime amor”, grande sucesso em 1961, volte a ser exibido na Broadway. Com uma remontagem em que as gangues de jovens oriundos dos grupos étnicos que disputam o poder no bairro dancem e se refugiem nos guetos para escapar dos efeitos de uma pandemia que ameaça exterminar a população.

*Jornalista e escritor