ASSINE
search button

O insustentável peso da mentira

Compartilhar

Houve uma indisfarçável mudança de humor do brasileiro na última semana. Pessoas saíram às ruas com uma cara mais alegre para, entre outras coisas, fazer política. Aos atos, manifestações e passeatas que marcaram os 40 anos da anistia e 38 do atentado a bomba no Riocentro, juntaram-se os protestos contra as queimadas na Amazônia e de repúdio aos decretos do governo que visam a falsificar e reescrever a história da ditadura. Até panelaço teve. Shows e debates em vários cantos recriaram o clima vivido em junho de 1979, quando o hino “O bêbado e o equilibrista”, de João Bosco e Aldir Blanc, na voz de Elis Regina, sacudiu os ares às vésperas da promulgação da Lei de Anistia.

Agora, o país dá sinais de que começa a despertar do perverso pesadelo bolsonariano, que o vinha conduzindo passivamente para o precipício de um suicídio coletivo. Velhos parceiros de lutas pela democracia, a ABI e OAB uniram-se para convocar intelectuais, artistas, políticos, juristas e entidades de direitos humanos para um ato público no próximo dia 3 de setembro, na ABI. A chamada é uma advertência impactante e verdadeira. Diante das nuvens negras que se formam nos céus, seus organizadores proclamam simplesmente: Ditadura Nunca Mais.

Não aceitamos, repelimos, não queremos viver de novo sem democracia. Quem viveu e sobreviveu sabe do que se trata. Quem é mais jovem e não viveu já pôde perceber o que poderá vir pelos desvarios e desrespeitos misóginos do capitão, que alcançaram até Brigitte Macron, a primeira dama francesa. Vai perder a liberdade, verá seu livro e seu filme preferidos censurados. Será vigiado na escola e na faculdade. Se for gay, vai para o xadrez. Isto se um dia não acordar com os homens fardados e armados arrombando a sua porta.

As manifestações seguem a onda do ato que reuniu três mil pessoas em solidariedade ao jornalista Glenn Greenwald, do Intercept, realizado lá mesmo na ABI, que voltou a abrir seu grande auditório para a realização de debates depois de anos de omissão nas mãos de um grupo oportunista. Já em show lotado realizado em Curitiba, o músico Mano Brown provocou o público perguntando: “ninguém aqui votou no cara? Todo mundo erra, parceiro! Vamos assumir”. Cada um tem o direito de opinião e livre escolha.

A ditadura ainda mantem os seus segredos, quase meio século depois de dada como encerrada. Grande parte de sua trajetória de crimes, censura, violações de direitos e desprezo pela liberdade foi transformada em livros, reportagens, filmes, documentários, diários, poesias, peças de teatro. Os mortos e desaparecidos também são testemunhas de suas arbitrariedades. Mas na contramão dos fatos e das evidências, há no governo quem defenda que ela não existiu e trabalhe pela destruição de sua memória.

Instituições como a Comissão de Anistia, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e a Comissão Nacional da Verdade, esta já extinta, criadas para implementar políticas públicas de memória, verdade e reparação, estão tendo seu trabalho desqualificado, arquivos destruídos e seus membros substituídos por pessoas, em sua maioria militares, que negam a existência da ditadura de 1964 e seus crimes. O objetivo desta política de governo é adulterar e reescrever a história, invertendo seu real significado. Uma mistificação que ameaça a democracia e precisa ser denunciada.

Os militares têm experiência na manipulação deste tipo de farsa. No feriado do dia do trabalho de 1981, ainda em plena ditadura, agentes do DOI e do SNI planejaram um atentado terrorista durante a realização de um show musical no Riocentro, RJ. Vinte mil pessoas estavam no local. A chacina seria atribuída às organizações de esquerda, dando gás para a manutenção da linha dura do regime. Manuseada dentro de um Puma, a bomba explodiu no colo do sargento Guilherme do Rosário, que morreu na hora, e feriu o capitão Wilson Machado, comandante da ação.

O IPM sigiloso aberto pelo Exército inocentou os militares e confirmou, contra todas as provas, que a explosão fora planejada por organizações subversivas. Vinte anos depois o IPM foi reaberto e os militares responsabilizados, mas até hoje ninguém foi punido. O MPF recorreu alegando que se trata de crime contra a humanidade. Em novo julgamento no STJ iniciado esta semana, o relator, ministro Rogério Cruz, reconheceu que o atentado configura crime não coberto pela Lei deAnistia.. Os militares acusados poderão finalmente ser condenados.

Ao longo da história, revisionistas chegaram a negar o Holocausto. Ainda não chegou o momento, mas um dia o presidente Trump poderá usar a mesma tática da mentira para negar que a bomba atômica de Hiroshima, no final da Segunda Grande Guerra, tenha sido jogada de um avião americano. No dia 6 de agosto de 1945 um bombardeio B 29 americano, batizado Enola Gay, nome da mãe do piloto, despejou o ataque atômico. Um clarão silencioso acordou os habitantes da cidade japonesa. Em minutos, uma torre de poeira, calor e fragmentos de fissão se ergueu no céu, deixando cair gotas imensas da mortífera mistura, dando inicio a um pavoroso processo de destruição. Mais de 100 mil pessoas foram mortas, mais da metade no primeiro dia.

Depois de reunir seu estado-maior Trump dirá, pelo seu twitter, com a mesma cara de pau de Bolsonaro, que foi um ato de desespero das forças armadas alemãs. Ambos trabalham com a mentira e a confusão

*Jornalista e escritor